Ivo Pitz
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O texto a seguir pertence ao livro de Marilena Chauí, publicado pela Editora Ática, em 2000. Seu título é" Convite à Filosofia"

Disponível também em: http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_42.htm

Unidade 8 - O mundo da prática // Capítulo 11 - A questão democrática

As experiências totalitárias: fascismo e nazismo

O século XX, durante os decênios de 1920-1940, viu acontecer uma experiência política sem precedentes: o totalitarismo, realizado por duas práticas políticas, o fascismo (originado na Itália) e o nazismo ou nacional-socialismo (originado na Alemanha).

A Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, perde territórios e é obrigada a pagar somas vultosas aos vencedores para ressarci-los dos prejuízos da guerra. A economia está destroçada, reinam o desemprego, a recessão e a inflação galopante. A crise toma proporções excessivas quando, em 1929, a Bolsa de Valores de Nova York “quebra”, levando à ruína boa parte do capital mundial.

Partindo da crítica marxista ao liberalismo, mas recusando a idéia de revolução proletária comunista, o austríaco Adolf Hitler se oferece à burguesia e à classe média para salvá-las da revolução operária. Propõe o reerguimento da Alemanha através do fortalecimento do Estado, do nacionalismo geopolítico (a nação é o “espaço vital” do povo, que deve conquistar e manter territórios necessários ao seu desenvolvimento econômico) e da aliança com os setores conservadores do capital industrial e sobretudo do capital financeiro. Hitler é eleito, em eleições livres e diretas, para o parlamento e, a seguir, dá o golpe de Estado nazista.

A Itália, embora estivesse do lado dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, ficou insatisfeita com as compensações que lhe foram dadas e, ao mesmo tempo, tentava manter-se economicamente pela exploração de colônias na África. Benito Mussolini, como Hitler, partiu da crítica marxista ao liberalismo, mas, como Hitler, recusava a idéia de revolução proletária comunista. Em vez dela, propôs o fortalecimento do Estado nacional, a aliança com setores conservadores do capital industrial e financeiro, a guerra de conquista de territórios e o nacionalismo baseado nas glórias do antigo Império Romano.

Por que nazismo? Essa palavra é a abreviação do nome de um partido político ao qual Hitler se filiou. Inicialmente, o partido denominava-se Partido Operário Alemão, mas Hitler propôs que fosse denominado Partido Operário Alemão Nacional-Socialista (Nationalsozialistische – Nazi). Operário, para indicar a oposição aos liberais, mas nacional-socialista para indicar a oposição aos comunistas e socialistas (críticos do nacionalismo por ser uma ideologia necessária ao capital).

A palavra fascismo foi inventada por Mussolini a partir do vocábulo italiano fascio, feixe. É dupla a significação do fascio: por um lado, refere-se ao conjunto de machados reunidos por meio de um feixe de varas, carregados por funcionários que precediam a aparição pública dos magistrados na antiga Roma, os machados significando o poder do Estado para decapitar criminosos e as varas, a unidade do povo romano em torno do Estado; por outro lado, refere-se a uma tradição popular do século XIX, em que certas comunidades, lutando por seus interesses e direitos, simbolizavam sua luta e unidade pelos fasci. Mussolini se apropria do símbolo romano e popular, criando por toda a Itália os fasci de combate.

Embora de origem e significação diferentes, nazismo e fascismo possuem aspectos comuns:

? o antiliberalismo: não como afirmação do socialismo e sim como defesa da total intervenção do Estado na economia e na sociedade civil. Em sua fase inicial, ambos se apresentam contra a ordem burguesa e conseguem a adesão da maioria da classe trabalhadora, que sofria as misérias da recessão e do desemprego;

? a colaboração de classe: afirmação de que o capital e o trabalho não são contrários nem contraditórios, mas podem e devem colaborar em harmonia para o bem da coletividade. No lugar das classes sociais, propõem (e criam) as corporações de ofício e de categoria, de modo a ocultar a divisão entre o capital e o trabalho. A idéia de Estado Corporativo havia sido elaborada pela Igreja Católica e exposta na bula do papa Leão XIII, Rerum Novarum, escrita contra socialistas e comunistas;

? aliança com o capital industrial monopolista e financeiro: isto é, com os setores do capital cuja vocação é imperialista, exigindo a conquista de novos territórios para a ampliação do mercado e o acúmulo do capital;

? nacionalismo: a realidade social é a Nação, entendida como unidade territorial e identidade racial, lingüística, de costumes e tradições. A nação é o espírito do povo, a pátria-mãe dos antepassados de sangue, una, única e indivisa;

? corporativismo: a sociedade, como propunha o papa Leão XIII, deve ser organizada pelo Estado sob a forma de corporações do trabalho e do capital, hierarquizadas por suas funções e harmonizadas pela política econômica do Estado;

? partido único que organiza as massas: em lugar de classes sociais, a nação é vista como constituída pelo povo e este é a massa organizada pelo partido único, que a exprime e representa. O partido organiza a sociedade não só em sindicatos corporativos, mas também em associações: de jovens, de mulheres, de crianças, de artistas, de escritores, de cientistas, de bairro, de ginástica e dança, de música, etc. A relação entre a sociedade (a nação) e o Estado é feita pela mediação do partido;

? ideologia de classe média: no modo de produção capitalista, há uma camada social que não é proletária-camponesa, nem é proprietária privada dos meios de produção, não é burguesa; trata-se da classe média, constituída por comerciantes, profissionais liberais, intelectuais, artistas, artesãos independentes e funcionários públicos. Essa classe valoriza os valores e os costumes da burguesia e teme a proletarização, sendo por isso anti-socialista e anticomunista. Embora admire a burguesia, sente rancor por não possuir a riqueza e os privilégios burgueses.

Com efeito, a classe média acredita no individualismo competitivo, na idéia do “homem que se faz sozinho”, graças à disciplina, à boa família, aos bons costumes e ao trabalho. Mas, ao contrário de suas expectativas, não consegue, apesar dos esforços, “subir na vida” e responsabiliza a “cobiça dos ricos” por sua situação inferiorizada, atribuindo-a à desordem do liberalismo. Por essas características, a classe média é conservadora e reacionária, tendo predileção por propostas políticas que lhe prometam organizar o Estado e a economia de tal modo que desapareçam o liberalismo e o risco do socialismo-comunismo. É o destinatário privilegiado e preferido do nazismo e do fascismo;

? imperialismo belicista: pela aliança com o capital monopolista e financeiro, pela ideologia nacionalista expansionista, pela ideologia de classe média, que espera das conquistas militares melhoria de suas condições sociais, nazismo e fascismo são políticas de guerra e de conquista. Hitler falará do sangue germânico que corre nas veias dos povos da Europa central e deverá ser “reconduzido” à mãe-pátria alemã pela guerra. Mussolini falará nas glórias do Império Romano e em sua reconquista pelas guerras italianas;

? educação moral e cívica: para garantir a adesão das massas à ideologia nazi-fascista, o Estado introduz a educação moral e cívica, pela qual crianças e adolescentes aprenderão os valores nazi-fascistas de pátria, disciplina, força do caráter, formação de corpos belos, saudáveis, poderosos, necessários aos guerreiros dos novos impérios;

? propaganda de massa: o nazi-fascismo introduz, pela primeira vez na História, a prática (hoje cotidiana e banal) da propaganda dirigida às massas. Essa propaganda é política, voltada para a manifestação de sentimentos, emoções e paixões, desvalorizando a razão, o pensamento e a consciência crítica. Por meio do rádio e da imprensa, de cartazes, desfiles, bandas, jogos atléticos, filmes, o nazi-fascismo procura incutir na massa a devoção incondicional à pátria e aos chefes, o amor à hierarquia, à disciplina e à guerra;

? prática da censura e da delação: o Estado, através do partido, das associações e de aparelhos especializados (policiais e militares), controla o pensamento, as ciências e as artes por meio da censura, queimando livros e obras de arte “contrários” à pátria e aos chefes, prendendo e torturando os dissidentes, perseguindo os “inimigos internos”. Estimula também, sobretudo em crianças e jovens, a prática da delação contra os dissidentes, “desviantes” e “inimigos internos” do Estado;

? racismo: menos forte no fascismo, é um componente essencial do nazismo, que inventa a idéia de “raça ariana” ou “raça nórdica”, superior a todas as outras, devendo conquistar algumas para que a sirvam, e aniquilar outras porque “inservíveis” e “perigosas”. A idéia de aniquilação das “raças inferiores” faz do genocídio uma política do Estado. O nazismo considerou os negros africanos, poloneses, tchecos, húngaros, romenos, croatas, sérvios e demais brancos europeus como raças inferiores a serem conquistadas. Considerou ciganos e judeus como raças a serem eliminadas (exterminou seis milhões de judeus);

? estatismo: contra o Estado liberal (considerado caótico) e contra as revoluções socialistas e comunistas (que recusam o Estado), o nazi-fascismo cria o Estado forte, centralizado administrativamente, militarizado, que controla toda a sociedade por meio do partido, das milícias de jovens, da educação moral e cívica, da propaganda, da censura e da delação. Existe apenas o Estado como totalidade que engloba em seu interior o todo da sociedade.

Totalitarismo, portanto, significa Estado total, que absorve em seu interior e em sua organização o todo da sociedade e suas instituições, controlando-a por inteiro.

O nazi-fascismo proliferou por toda a parte. Foi vitorioso não apenas na Itália e na Alemanha, mas, com variações, tomou o poder na Espanha (de Franco), em Portugal (com Salazar) e em vários países da Europa Oriental.

Conseguiu ter partidos significativos em países como França (Ação Francesa), Inglaterra, Bélgica, Áustria, Argentina. No Brasil, deu origem à Ação Integralista Brasileira, criada por Plínio Salgado.

A Revolução de Outubro

Em outubro de 1917, contra toda expectativa marxista, tem lugar a Revolução Russa, sob a liderança do Partido Bolchevique.

Por que contra toda expectativa marxista? Porque Marx julgara que a revolução proletária só poderia realizar-se quando as contradições internas ao capitalismo esgotassem as possibilidades econômicas e políticas da burguesia e o proletariado, através da revolução, instaurasse a nova sociedade comunista. Em termos marxistas, a revolução proletária deveria acontecer nos países de capitalismo avançado, como a Inglaterra, a França, a Alemanha.

Era essencial para a teoria da praxis revolucionária o pleno desenvolvimento do capitalismo, pois isso significava que a infra-estrutura econômica, o avanço tecnológico e o grau de organização da classe trabalhadora preparariam a grande mudança histórica. Não era concebível, portanto, a revolução na Rússia, que vivia sob o Antigo Regime (a monarquia por direito divino, absoluta ou czarista), era majoritariamente pré-capitalista, com pequeno desenvolvimento do capitalismo em alguns centros urbanos, promovido não pela burguesia (quase inexistente), mas pelo próprio Estado e pelo capital externo (inglês, francês e alemão), sem forte consciência e organização proletárias.

Foi ali, porém, que aconteceu a primeira revolução proletária, antecedida por duas revoluções menores: a de 1905, que instaurou o parlamento, com partidos políticos da burguesia liberal, e a de fevereiro de 1917, que proclamou a república e convocou uma assembléia constituinte, mas cujo governo provisório não realizou as reformas prometidas e prosseguiu na guerra contra a Alemanha, provocando reação popular e rebelião das tropas.

Nas circunstâncias russas, o grande sujeito revolucionário não pôde ser a classe proletária organizada, mas teve que ser uma vanguarda política, liderada por intelectuais acostumados às lutas clandestinas, o Partido Bolchevique ou a fração majoritária do Partido Social-Democrata, que iria tornar-se o Partido Comunista Russo.

Que dificuldades enfrentou a Revolução de Outubro?

? as dificuldades previsíveis, que toda revolução comunista enfrentaria, isto é, a reação militar e econômica do capital, sob a forma de guerra civil e de boicote econômico internacional;

? a existência da Primeira Guerra Mundial, que não só depauperou a precária economia russa, mas também permitiu que os poderes capitalistas enviassem tropas para auxiliar a contra-revolução, o chamado Exército dos Brancos;

? o fracasso da revolução comunista alemã, em 1919, da qual se esperava não só apoio para o desenvolvimento da sociedade socialista russa, mas também que fosse o estopim da revolução proletária mundial; esta, se ocorresse, livraria a revolução russa do isolamento, do boicote capitalista internacional e da ameaça permanente de invasão militar capitalista;

? a ausência de forte consciência política e organização operárias num país majoritariamente camponês e no qual as atividades políticas tinham sido necessariamente obra de grupos clandestinos, formados sobretudo por intelectuais e estudantes. O contingente revolucionário mais significativo que os bolcheviques conseguiram não veio do proletariado organizado, mas das tropas (exército e marinha) rebeladas contra a guerra mundial, iniciada em 1914. A militarização, inevitável em toda revolução, no caso da russa institucionalizou-se como organização do Partido Bolchevique;

? a ausência de economia capitalista desenvolvida que houvesse preparado a infra-estrutura econômica e a organização sociopolítica para a nova sociedade. A revolução teve que realizar duas revoluções numa só: a burguesa, de destruição do Antigo Regime, e a comunista, contra a burguesia. Essa situação, mais a ruína econômica causada pela guerra e pela continuação da guerra civil, bem como o boicote do capitalismo internacional obrigaram ao chamado “comunismo de guerra”, que transformou a “ditadura do proletariado” em ditadura do Partido Bolchevique para a instauração de uma nova forma inesperada de capitalismo, o capitalismo de Estado, considerado “etapa socialista” para a futura sociedade comunista. Em outras palavras, a estatização da economia substituiu a abolição do Estado, prevista pelo Manifesto comunista.

Assenhoreando-se do Estado, o Partido Bolchevique criou um poderoso aparato militar e burocrático, que, evidentemente, entrou em conflito com os conselhos populares de operários, camponeses e soldados, os sovietes, pois estes haviam-se organizado para realizar o autogoverno de uma sociedade sem Estado. Os sovietes foram sendo dizimados e substituídos por órgãos do Partido Bolchevique, deles restando apenas o nome, que seria colado ao de república socialista: República Socialista Soviética.

Em 1923, o Partido Bolchevique está profundamente dividido entre a posição de Trotski – que critica a burocratização e propõe a tese da revolução permanente – e a de Stalin, que conseguira galgar o posto de secretário-geral do partido, acumulando enormes poderes em suas mãos. Doente, Lênin escreve um testamento político no qual sugere o afastamento de Stalin, alertando para o perigo de seu autoritarismo. Não foi, porém, atendido. Morre em janeiro de 1924.

Valendo-se do cargo e colocando a direção partidária contra Trotski, Stalin assume o poder do Estado. Sob sua orientação (embora ficasse nos bastidores), as principais lideranças da revolução foram expulsas do partido; Trotski foi banido e, em 1940, assassinado por um agente stalinista, no México.

Com a tese “socialismo num só país” (portanto oposta à tese marxista do internacionalismo proletário e da revolução mundial), Stalin implanta à força a coletivização da economia, sob a direção do Estado e do partido. Exerce controle militar, policial e ideológico sobre toda a sociedade, institui o “culto à personalidade” e, em 1936, começa os grandes expurgos políticos, conhecidos como “processos de Moscou”. Sempre nos bastidores, conseguiu que seus aliados forjassem todo tipo de acusação contra lideranças políticas de oposição, levando-as à condenação à morte, ou à prisão perpétua em campos de concentração. Fortaleceu a polícia secreta e consolidou o totalitarismo.

Além da coletivização econômica, planejou a economia para investimentos na indústria pesada, sacrificando a produção de bens de consumo e os serviços públicos sociais. Prevendo a Segunda Guerra Mundial, orientou a economia para a indústria bélica, química pesada e energia elétrica, produzindo, às custas de enormes sacrifícios e privações da população, o maior crescimento econômico da história da Rússia, que se tornou potência econômica e militar mundial.

O totalitarismo stalinista

Embora o totalitarismo russo esteja ligado indissoluvelmente ao nome de Stalin, isso não significa que tenha terminado com sua morte.

Até a chamada glasnost (transparência), proposta nos anos 80 por Gorbatchev, existiu o stalinismo sem Stalin, ou seja, o totalitarismo.

Muitos traços do stalinismo são semelhantes aos do nazi-fascismo (centralização estatal, partido único com controle total sobre a sociedade, militarização, nacionalismo, imperialismo, censura do pensamento e da expressão, propaganda estatal no lugar da informação, campos de concentração, invenção contínua dos “inimigos internos”), mas a diferença fundamental e trágica entre eles está no fato de que o stalinismo sufocou a primeira revolução proletária e deformou profundamente o marxismo, marcando com o selo totalitário os partidos comunistas do mundo inteiro.

As grandes teses de Marx foram destruídas pelas teses stalinistas:

? à tese marxista da revolução proletária mundial, o stalinismo contrapôs a tese do socialismo num só país, transformando-a em diretriz obrigatória para os partidos comunistas do mundo inteiro. Isso significou que tais partidos deveriam abandonar práticas revolucionárias em seus países, para não prejudicar as relações internacionais da União Soviética. Eram estimuladas, porém, as guerras de libertação nacional contra os países colonialistas sempre que isso fosse do interesse econômico e geopolítico da Rússia;

? à tese marxista da ditadura do proletariado para a derrubada do Estado, o stalinismo contrapôs a ditadura do partido único e do Estado forte;

? à tese marxista da abolição do Estado na sociedade comunista sem classes sociais, contrapôs o agigantamento do Estado, a absorção da sociedade pelo aparelho estatal e pelos órgãos do partido, cuja burocracia constituiu-se numa nova classe dominante, com interesses e privilégios próprios;

? à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a pequena burguesia, bem como à afirmação de que, em muitos processos revolucionários, parte da burguesia e da pequena burguesia se aliam ao proletariado, mas o abandonam a partir de certo ponto, devendo ele prosseguir sozinho na ação revolucionária, o stalinismo contrapôs a tese oportunista da “estratégia” e da “tática”, segundo a qual, em certos casos, o proletariado faria alianças e nelas permaneceria e, em outros, não faria aliança alguma, se isso não fosse do interesse da vanguarda partidária;

? à tese marxista do internacionalismo proletário (“Proletários de todos os países, uni-vos”, dizia o Manifesto comunista), contrapôs o nacionalismo e o imperialismo russos, primeiro invadindo e dominando a Europa Oriental, e depois os países asiáticos não dominados pela China;

? à tese marxista do partido político como instrumento de organização da classe trabalhadora e expressão prática de suas idéias e lutas, contrapôs a burocracia partidária como vanguarda política, que não só “representa” os interesses proletários, mas os encarna e os dirige, pois é detentora do poder e do saber;

? à tese marxista da relação indissolúvel entre as idéias e as condições materiais, isto é, entre teoria e prática, que permitia o desenvolvimento da consciência crítica da classe trabalhadora, contrapôs a propaganda estatal, a ideologia do chefe como “pai dos povos”, o controle da educação e dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado;

? à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa relação dialética, que o conhecimento é histórico e um processo interminável de análise e compreensão das condições concretas postas pela realidade social, o stalinismo contrapôs uma invenção, o Diamat (materialismo dialético), isto é, o marxismo como doutrina a–histórica, fixada em dogmas expostos sob a forma de catecismos de vulgarização da ideologia stalinista. Foi tão longe nisso, que considerou função do Estado definir o pensamento correto.

Para tanto, os intelectuais do partido foram encarregados de determinar as linhas “corretas” para a Filosofia, as ciências e as artes. Instituiu-se a psicologia oficial, a medicina e a genética oficiais, a literatura, a pintura, a música e o cinema oficiais, a filosofia e a ciência oficiais, encarregando-se a polícia secreta de queimar obras, prender, torturar, assassinar ou enviar para campos de concentração os “dissidentes” ou “desviantes”. Os herdeiros de Stalin foram mais longe: consideravam que, como o partido e o Estado dizem a verdade absoluta, os “desvios” intelectuais, artísticos e políticos eram sintomas de distúrbios psíquicos e de loucura, enviando os “dissidentes” para hospitais psiquiátricos;

? à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria história quando toma consciência de sua situação e luta contra ela, aprendendo com a memória dos combates e a tradição das derrotas, o stalinismo contrapôs a idéia de história oficial da classe proletária, identificada com a história do partido comunista e com a interpretação dada por este último aos acontecimentos históricos, roubando assim dos trabalhadores o direito à memória;

? à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora não são indivíduos dessa ou daquela classe, mas uma outra classe social enquanto classe, contrapôs a idéia de “inimigos do povo saídos do seio do próprio povo” como inimigos de sua própria classe, porque são “agentes estrangeiros infiltrados no seio do povo uno, indiviso, bom e homogêneo”;

? à tese de Marx da nova sociedade como concretização da liberdade, da igualdade, da abundância, da justiça e da felicidade, o stalinismo contrapôs o “operário-modelo” e o “militante exemplar”, acostumados à obediência cega aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia social imposta por eles. Viver pelo e para o Estado e o partido tornaram-se sinônimos de felicidade, liberdade e justiça.

A transformação das idéias e práticas stalinistas em instituições sociais fez com que o stalinismo não fosse um acontecimento de superfície, que pudesse ser apagado com a morte de Stalin. Pelo contrário. Foi instituída uma nova formação social, que modelou corpos, corações e mentes e que só desapareceu, parcialmente, no fim dos anos 80 e inícios dos 90, porque a crise econômica, provocada pelo delírio armamentista, fez emergirem contradições sufocadas durante 70 anos.

A democracia como ideologia

Dois acontecimentos políticos marcaram o período posterior à Segunda Guerra Mundial: a guerra fria e o surgimento do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).

A guerra fria foi a divisão geopolítica, econômica e militar entre dois grandes blocos: o bloco capitalista, sob a direção dos Estados Unidos, e o bloco comunista, sob a direção da União Soviética e da China. Uma das principais razões para essa divisão foi militar, isto é, a invenção da bomba atômica, que punha fim às guerras convencionais.

Inicialmente, cada bloco julgava que a posse de armamentos nucleares lhe daria mais poder para eliminar o outro. Pouco a pouco, porém, a chamada “corrida armamentista” deixou de visar diretamente à guerra, voltando-se para a intimidação recíproca dos adversários, limitando suas ações imperialistas. Finalmente, percebeu-se que uma guerra não convencional ou nuclear teria resultado zero, ou seja, não teria vencedores, pois o planeta seria inteiramente destruído. Antes, porém, que se chegasse a essa conclusão, a guerra fria definiu o alinhamento político e econômico de todos os países à volta dos dois blocos hegemônicos.

O Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazi-fascismo e da revolução comunista. A crise econômica gerada pela guerra, as críticas nazi-fascista e socialista ao liberalismo, a imagem da sociedade socialista em construção na União Soviética e na China, fazendo com que os trabalhadores encontrassem nelas (ignorando o que ali realmente se passava) um contraponto para as desigualdades e injustiças do capitalismo, tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado, corrigindo os problemas econômicos e sociais.

O Estado passa a intervir na economia, investindo em indústrias estatais, subsidiando empresas privadas na indústria, na agricultura e no comércio, exercendo controle sobre preços, salários e taxas de juros. Assume para si um conjunto de encargos sociais ou serviços públicos sociais: saúde, educação, moradia, transporte, previdência social, seguro-desemprego. Atende demandas de cidadania política, como o sufrágio universal.

Sob os efeitos da guerra fria e do Estado do Bem-Estar Social, o bloco capitalista procurou impedir, nos países economicamente subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo (América Latina, África, Oriente Médio), rebeliões populares que desembocassem em revoluções socialistas. O perigo existe por dois motivos principais: ou porque os países do Terceiro Mundo são colônias dos países capitalistas, ou porque neles a desigualdade econômico-social, a miséria e as injustiças são de tal monta que, nas colônias, guerras de libertação nacional e, nos demais países, rebeliões populares podem acontecer a qualquer momento e transformar-se em revoluções. O caso de Cuba, em 1958, evidenciou essa possibilidade.

Os países mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas: através do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), fizeram empréstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos serviços sociais e em empresas estatais; e, através dos serviços de espionagem e das forças armadas, ofereceram “ajuda” militar para reprimir revoltas e revoluções. Com isso, estimularam, sobretudo a partir dos anos 60, a proliferação de ditaduras militares e regimes autoritários no Terceiro Mundo, como foi o caso do Brasil.

No centro do discurso político capitalista encontra-se a defesa da democracia.

Vimos que as formações sociais totalitárias cresceram à sombra da crítica à democracia liberal, considerada responsável pela desordem e caos sócio-econômicos, porque abandona a sociedade à cobiça ilimitada dos ricos e poderosos. A democracia é o mal.

Por seu turno, na luta contra os totalitarismos, os Estados capitalistas afirmaram tratar-se do combate entre a opressão e a liberdade, a ditadura e a democracia. A democracia é o bem.

Nos dois casos, a democracia, erguida ora como o mal, ora como o bem, deixava de ser encarada como forma da vida social para tornar-se um tipo de governo e um instrumento ideológico para esconder o que ela é, em nome do que ela “vale”. Tanto assim, que os grandes Estados capitalistas, campeões da democracia, não tiveram dúvida em auxiliar a implantação de regimes autoritários (portanto antidemocráticos) toda vez que lhes pareceu conveniente.

Embora liberalismo e Estado do Bem-Estar Social (ou social-democracia) sejam diferentes quanto à questão dos direitos – o primeiro limita os direitos à cidadania política da classe dominante, o segundo amplia a cidadania política e acolhe a idéia de direitos sociais -, no que tange à democracia são semelhantes. Como a definem? Como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer?

Em primeiro lugar, que identificam liberdade e competição – tanto a competição econômica da chamada “livre iniciativa”, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições.

Em segundo lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria.

Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer).

Em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia. Em outras palavras, defendem a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política – a política seria assunto dos representantes, que são políticos profissionais -, que, por seu turno, favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, evitando, dessa maneira, uma participação política que traria à cena os “extremistas” e “radicais” da sociedade.

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais.

Vista por esse prisma, é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico que preside a idéia de direitos do cidadão. Em outras palavras, desde a Revolução Francesa de 1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. A democracia é formal, não é concreta.

A sociedade democrática

Vimos que uma ideologia não nasce do nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida, dissimulada e imaginária, a praxis social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia democrática. Em outras palavras, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber.

Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar.

As idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade.

As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia.

Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse.

Uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.

Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os interesses dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros.

Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que, por exemplo, numa região de uma grande cidade, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mesma região, um outro grupo social, favelado, tenha carência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra.

Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência; temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um outro conflito de interesses.

Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho.

Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.

A criação de direitos

Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho.

A observação de Aristóteles e, depois, a de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real.

Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.

Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política.

Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana.

Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis.

A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é representativa. O direito à participação tornou-se, portanto, indireto, através da escolha de representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e verdadeira.

Falsa, porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e, portanto, em relação a esse último, ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação.

Verdadeira, porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos homens adultos “independentes”. Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo.

Vemos aqui, portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um direito.

As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis) e, a partir destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura -, os direitos das chamadas “minorias”[i] – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios – e o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares.

As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais.

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso, dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas:

1. a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado;

2. a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.

Os obstáculos à democracia

Liberdade, igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os pobres (Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas (Marx).

É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.

É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.

Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários, com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas.

A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos sociais) e o retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no planejamento econômico.

O abandono das políticas sociais chama-se privatização, e o do planejamento econômico, resregulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos.

Essa mudança nas forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de grandes massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo, como o Brasil.

Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo dos produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços. Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação).

O direito à participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer.

Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir.

Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos.

Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos.

Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política.

Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.

Dificuldades para a democracia no Brasil

Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.

Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade.

Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isso.

Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário.

Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família (o despotes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.

A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém).

A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei.

As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”).

Como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.

[i] Parece estranho falar em “minoria” para referir-se a mulheres, negros, idosos, crianças, pois quantitativamente formam a maioria. É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo, mas qualitativo. Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam direito à cidadania, usou como critério a idéia de maioridade racional: seriam cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão. Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes, isto é, não dependem de outros para viver. São independentes os proprietários privados dos meios de produção e os profissionais liberais. São dependentes e, portanto, em estado de minoridade racional: as mulheres, as crianças, os adolescentes, os trabalhadores e os “selvagens primitivos” (africanos e índios). Formam a minoria. Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos (por exemplo, os homossexuais), fala-se em “minorias”. A “maioridade” liberal refere-se, pois, ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal.