Ivo Pitz
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O texto a seguir pertence ao livro de Marilena Chauí, publicado pela Editora Ática, em 2000. Seu título é" Convite à Filosofia"

Disponível também em: http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_42.htm

Unidade 8 - O mundo da prática // Capítulo 8 - As filosofias políticas – 1ª parte

A vida boa

Quando lemos os filósofos gregos e romanos, observamos que tratam a política como um valor e não como um simples fato, considerando a existência política como finalidade superior da vida humana, como a vida boa, entendida como racional, feliz e justa, própria dos homens livres. Embora considerem a forma mais alta de vida a do sábio contemplativo, isto é, do filósofo, afirmam que, para os não-filósofos, a vida superior só existe na Cidade justa e, por isso mesmo, o filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a Cidade.

Política e Filosofia nasceram na mesma época. Por serem contemporâneas, diz-se que “a Filosofia é filha da polis” e muitos dos primeiros filósofos (os chamados pré-socráticos) foram chefes políticos e legisladores de suas cidades. Por sua origem, a Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político, elaborando teorias para explicar sua origem, sua finalidade e suas formas. A esses filósofos devemos a distinção entre poder despótico e poder político.

Origem da vida política

Entre as explicações sobre a origem da vida política, três foram as principais e as mais duradouras:

1. As inspiradas no mito das Idades do Homem ou da Idade de Ouro. Esse mito recebeu inúmeras versões, mas, em suas linhas gerais, narra sempre o mesmo: no princípio, durante a Idade de Ouro, os seres humanos viviam na companhia dos deuses, nasciam diretamente da terra e já adultos, eram imortais e felizes, sua vida transcorria em paz e harmonia, sem necessidade de leis e governo.

Em cada versão, a perda da Idade de Ouro é narrada de modo diverso, porém, em todas, a narrativa relata uma queda dos humanos, que são afastados dos deuses, tornam-se mortais, vivem isoladamente pelas florestas, sem vestuário, moradia, alimentação segura, sempre ameaçados pelas feras e intempéries. Pouco a pouco, descobrem o fogo: passam a cozer os alimentos e a trabalhar os metais, constroem cabanas, tecem o vestuário, fabricam armas para a caça e proteção contra animais ferozes, formam famílias.

A última idade é a Idade do Ferro, em geral descrita como a era dos homens organizados em grupos, fazendo guerra entre si. Para cessar o estado de guerra, os deuses fazem nascer um homem eminente, que redigirá as primeiras leis e criará o governo. Nasce a política com a figura do legislador, enviado pelos deuses.

Com variantes, esse mito será usado na Grécia por Platão e, em Roma, por Cícero, para simbolizar a origem da política através das leis e da figura do legislador. Leis e legislador garantem a origem racional da vida política, a obra da razão sendo a ordem, a harmonia e a concórdia entre os humanos sob a forma da Cidade. A razão funda a política.

2. As inspiradas pela obra do poeta grego Hesíodo, O trabalho e os dias. Agora, a origem da vida política vincula-se à doação do fogo aos homens, feita pelo semideus Prometeu. Graças ao fogo, os humanos podem trabalhar os metais, cozer os alimentos, fabricar utensílios e sobretudo descobrir-se diferentes dos animais. Essa descoberta leva a perceber que viverão melhor se viverem em comunidade, dividindo os trabalhos e as tarefas. Organizados em comunidades, colocam-se sob a proteção dos deuses de quem receberam as leis e as orientações para o governo.

Pouco a pouco, porém, descobrem que sua vida possui problemas e exige soluções que somente eles podem enfrentar e encontrar. Mantendo a piedade pelos deuses, entretanto, criam leis e instituições propriamente humanas, dando origem à comunidade política propriamente dita. É a teoria política defendida pelos sofistas. Nessa concepção, o desenvolvimento das técnicas e dos costumes leva a convenções entre os humanos para a vida em comunidade sob leis. A convenção funda a política.

3. As teorias que afirmam que a política decorre da Natureza e que a Cidade existe por natureza. Os humanos são, por natureza, diferentes dos animais, porque são dotados do logos, isto é, da palavra como fala e pensamento. Por serem dotados da palavra, são naturalmente sociais ou, como diz Aristóteles, são animais políticos. Não é preciso buscar nos deuses, nas leis ou nas técnicas a origem da Cidade: basta conhecer a natureza humana para nela encontrar a causa da política. Os humanos, falantes e pensantes, são seres de comunicação e é essa a causa da vida em comunidade ou da vida política. Nessa concepção, a Natureza funda a política.

Na primeira teoria, a política é o remédio que a razão encontra para a perda da felicidade da comunidade originária. Na segunda, a política resulta do desenvolvimento das técnicas e dos costumes, sendo uma convenção humana. Na terceira, enfim, a política define a própria essência do homem, e a Cidade é considerada uma instituição natural. Enquanto as duas primeiras reelaboram racionalmente as explicações míticas, a terceira parte diretamente da definição da natureza humana.

Finalidade da vida política

Para os gregos, a finalidade da vida política era a justiça na comunidade.

A noção de justiça fora, inicialmente, elaborada em termos míticos, a partir de três figuras principais: themis, a lei divina que institui a ordem do Universo; cosmos, a ordem universal estabelecida pela lei divina; e dike, a justiça entre as coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem cósmica. Pouco a pouco, a noção de dike torna-se a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para julgá-las.

A idéia de justiça se refere, portanto, a uma ordem divina e natural, que regula, julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da Natureza ou physis. Lei (nomos), Natureza (physis) e ordem (cosmos) constituem, assim, o campo da idéia de justiça.

A invenção da política exigiu que as explicações míticas fossem afastadas – themis e dike deixaram de ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis ao mundo e aos seres humanos, passando a significar as causas que fazem haver ordem, lei e justiça na Natureza e na polis. Justo é o que segue a ordem natural e respeita a lei natural. Mas a polis existe por natureza ou por convenção entre os homens? A justiça e a lei política são naturais ou convencionais? Essas indagações colocam, de um lado, os sofistas, defensores do caráter convencional da justiça e da lei, e, de outro lado, Platão e Aristóteles, defensores do caráter natural da justiça e da lei.

Para os sofistas, a polis nasce por convenção entre os seres humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento. Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nomos. A justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso.

Se a polis e as leis são convenções humanas, podem mudar, se mudarem as circunstâncias. A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua a comunidade política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem política é o debate para chegar ao consenso, isto é, a expressão pública da vontade da maioria, obtida pelo voto.

Por esse motivo, os sofistas se apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra (retórica). Mediante remuneração, ensinavam os jovens a discutir em público, a defender e combater opiniões, ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as questões.

A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia, conseguida na discussão pública de opiniões e interesses contrários. O debate dos opostos, a exposição persuasiva dos argumentos antagônicos, deviam levar à vitória do interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.

Em oposição aos sofistas, Platão e Aristóteles afirmam o caráter natural da polis e da justiça. Embora concordem sob esse aspecto, diferem no modo como concebem a própria justiça.

Para Platão, os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura. Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividade: a alma concupiscente ou desejante (situada no ventre), que busca satisfação dos apetites do corpo, tanto os necessários à sobrevivência, quanto os que, simplesmente, causam prazer; a alma irascível ou colérica (situada no peito), que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de nossa vida; e a alma racional ou intelectual (situada na cabeça), que se dedica ao conhecimento, tanto sob a forma de percepções e opiniões vindas da experiência, quanto sob a forma de idéias verdadeiras contempladas pelo puro pensamento.

Também a polis possui uma estrutura tripartite, formada por três classes sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade; a classe militar dos guerreiros, responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o governo da cidade sob as leis.

Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma concupiscente (os apetites e prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as. Também é injusto quando a alma irascível (a agressividade) é mais poderosa do que a racional, dominando-a. O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma racional (pensamento e vontade) é mais forte do que as outras duas almas, impondo à concupiscente a virtude da temperança ou moderação, e à irascível, a virtude da coragem, que deve controlar a concupiscência. O homem justo é o homem virtuoso; a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a hierarquia das almas, a superior dominando as inferiores.

O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia, mas aplicada à comunidade. Como realizar a Cidade justa? Pela educação dos cidadãos – homens e mulheres (Platão não exclui as mulheres da política e critica os gregos por excluí-las). Desde a primeira infância, a polis deve tomar para si o cuidado total das crianças, educando-as para as funções necessárias à Cidade.

A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma seleção: as menos aptas serão destinadas à classe econômica, enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos. Uma nova seleção separa os jovens: os menos aptos serão destinados à classe militar enquanto os mais aptos continuarão a ser educados. O novo ciclo educacional ensina as ciências aos jovens e os submete a uma última seleção: os menos aptos serão os administradores da polis enquanto os mais aptos prosseguirão os estudos. Aprendem, agora, a Filosofia, que os transformará em sábios legisladores, para que sejam a classe dirigente.

A Cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em contrapartida, a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares -, ou na dos militares – que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá-la com justiça.

Por seu turno, Aristóteles terá uma teoria política diversa da dos sofistas e de Platão.

Para determinar o que é a justiça, diz ele, precisamos distinguir dois tipos de bens: os partilháveis e os participáveis. Um bem é partilhável quando é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída – a riqueza é um bem partilhável. Um bem é participável quando é uma qualidade indivisível, que não pode ser dividida nem distribuída, podendo apenas ser participada – o poder político é um bem participável. Existem, pois, dois tipos de justiça na Cidade: a distributiva, referente aos bens econômicos; e a participativa, referente ao poder político. A Cidade justa saberá distingui-las e realizar ambas.

A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. Suponhamos, por exemplo, que a polis esteja atravessando um período de fome em decorrência de secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuí-los a todos. Para ser justa, a Cidade não poderá reparti-los de modo igual para todos. De fato, aos que são pobres, deve doá-los, mas aos que são ricos, deve vendê-los, de modo a conseguir fundos para aquisição de novos alimentos. Se doar a todos ou vender a todos, será injusta. Também será injusta se atribuir a todos as mesmas quantidades de alimentos, pois dará quantidades iguais para famílias desiguais, umas mais numerosas do que outras.

A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais, dando-lhes desigualmente os bens, implica afirmar que numa cidade onde a diferença entre ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça, pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos. Na cidade injusta, em lugar de permitirem aos pobres o acesso às riquezas (por meio de limitações impostas à extensão da propriedade, de fixação da boa remuneração do trabalho dos trabalhadores pobres, de impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas, etc.), vedam-lhes tal direito. Ora, somente os que não são forçados às labutas ininterruptas para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e feliz. A Cidade injusta, portanto, impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o direito à vida boa.

A justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder. Essa definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza, os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos.

Há Cidades que valorizam a honra (isto é, a hierarquia social baseada no sangue, na terra e nas tradições), julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só: tem-se a monarquia, onde é justo que um só participe do poder. Há Cidades que valorizam a virtude como excelência de caráter (coragem, lealdade, fidelidade ao grupo e aos antepassados), julgando que o poder cabe aos melhores: tem-se a aristocracia, onde é justo que somente alguns participem do poder. Há Cidades que valorizam a igualdade (são iguais os que são livres), consideram a diferença entre ricos e pobres econômica e não política, julgando que todos possuem o direito de participar do poder: tem-se a democracia, onde é justo que todos governem.

Os regimes políticos

Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras que designam os regimes políticos: arche – o que está à frente, o que tem comando – e kratos – o poder ou autoridade suprema. As palavras compostas com arche (arquia) designam quantos estão no comando. As compostas com kratos (cracia) designam quem está no poder.

Assim, do ponto de vista da arche, os regimes políticos são: monarquia ou governo de um só (monas), oligarquia ou governo de alguns (oligos), poliarquia ou governo de muitos (polos) e anarquia ou governo de ninguém (ana).

Do ponto de vista do kratos, os regimes políticos são: autocracia (poder de uma pessoa reconhecida como rei), aristocracia (poder dos melhores), democracia (poder do povo)[i].

Na Grécia e na Roma arcaicas predominaram as monarquias. No entanto, embora os antigos reis afirmassem ter origem divina e vontade absoluta, a sociedade estava organizada de tal forma que o governante precisava submeter as decisões a um Conselho de Anciãos e à assembléia dos guerreiros ou chefes militares. Isso fez com que, pouco a pouco, o regime se tornasse oligárquico, ficando nas mãos das famílias mais ricas e militarmente mais poderosas, cujos membros se consideravam os “melhores”, donde a formação da aristocracia.

O único regime verdadeiramente democrático foi o de Atenas. Nas demais cidades gregas e em Roma, o regime político era oligárquico-aristocrático, as famílias ricas sendo hereditárias no poder, mesmo quando admitiam a entrada de novos membros no governo, pois as novas famílias também se tornavam hereditárias.

Devemos a Platão e a Aristóteles duas idéias políticas, elaboradas a partir da experiência política antiga: a primeira delas é a distinção entre regimes políticos e não-políticos; a segunda, a da transformação de um regime político em outro.

Um regime só é político se for instituído por um corpo de leis publicamente reconhecidas e sob as quais todos vivem, governantes e súditos, governantes e cidadãos. Em suma, é político o regime no qual os governantes estão submetidos às leis. Quando a lei coincide com a vontade pessoal e arbitrária do governante, não há política, mas despotismo e tirania. Quando não há lei de espécie alguma, não há política, mas anarquia.

A presença ou ausência da lei conduz à idéia de regimes políticos legítimos e ilegítimos. Um regime é legítimo quando, além de legal, é justo (as leis são feitas segundo a justiça); um regime é ilegítimo quando a lei é injusta ou quando é contrário à lei, isto é, ilegal, ou, enfim, quando não possui lei alguma.

Os regimes políticos se transformam em decorrência de mudanças econômicas – aumento do número de ricos e diminuição do número de pobres, diminuição do número de ricos e aumento do número de pobres – e de resultados de guerras – conquistas de novos territórios e populações, submissão a vencedores que conquistam a Cidade.

Presença ou ausência da lei, variação econômica e militar determinam, segundo Platão e Aristóteles, a corrupção ou decadência dos regimes políticos: a monarquia degenera em tirania, quando um só governa para servir aos seus interesses pessoais; a aristocracia degenera em oligarquia dos muito ricos – plutocracia – ou dos guerreiros – timocracia -, que também governam apenas em seu interesse próprio; a democracia degenera em demagogia e esta, em anarquia. Em geral, a anarquia leva à tirania, quando a sociedade, desgovernada, apela para um homem superior aos outros no manejo das armas e dos argumentos, nele buscando a salvação.

A tipologia platônico-aristotélica segundo o valor dos que participam do poder e a teoria da decadência ou corrupção dos regimes políticos serão mantidas até o século XVIII, aparecendo com vigor numa das obras políticas mais importantes da Ilustração, O espírito das leis, de Montesquieu. Nessa obra, encontramos também uma idéia desenvolvida por Aristóteles, para quem a variação dos regimes políticos depende de dois fatores principais: a natureza ou índole do povo e a extensão do território.

Assim, por exemplo, um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a igualdade e a liberdade e cuja Cidade é de pequena extensão territorial, naturalmente instituirá uma democracia e será mal-avisada se a substituir por um outro regime. Em contrapartida, um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a obediência a uma única autoridade e que vive num território extenso, naturalmente instituirá a monarquia, sendo desavisada se a substituir por outro regime político. Em outras palavras, os filósofos gregos legaram ao Ocidente a idéia de regimes políticos naturais.

Ética e política

Se a política tem como finalidade a vida justa e feliz, isto é, a vida propriamente humana digna de seres livres, então é inseparável da ética.

De fato, para os gregos, era inconcebível a ética fora da comunidade política – a polis como koinonia ou comunidade dos iguais -, pois nela a natureza ou essência humana encontrava sua realização mais alta.

Quando estudamos a ética, vimos que Aristóteles distinguira entre teoria e prática e, nesta, entre fabricação e ação, isto é, diferenciara poiesis e praxis. Vimos também que reservara à praxis um lugar mais alto do que à fabricação, definindo-a como ação voluntária de um agente racional em vista de um fim considerado bom. A praxis por excelência é a política. A esse respeito, na Ética a Nicômaco, escreve Aristóteles:

Se, em nossas ações, há algum fim que desejamos por ele mesmo e os outros são desejados só por causa dele, e se não escolhemos indefinidamente alguma coisa em vista de uma outra (pois, nesse caso, iríamos ao infinito e nosso desejo seria fútil e vão), é evidente que tal fim só pode ser o bem, o Sumo Bem… Se assim é, devemos abarcar, pelo menos em linhas gerais, a natureza do Sumo Bem e dizer de qual saber ele provém. Consideramos que ele depende da ciência suprema e arquitetônica por excelência. Ora, tal ciência é manifestamente a política, pois é ela que determina, entre os saberes, quais são os necessários para as Cidades e que tipos de saberes cada classe de cidadãos deve possuir… A política se serve das outras ciências práticas e legisla sobre o que é preciso fazer e do que é preciso abster-se; assim sendo, o fim buscado por ela deve englobar os fins de todas as outras, donde se conclui que o fim da política é o bem propriamente humano. Mesmo se houver identidade entre o bem do indivíduo e o da Cidade, é manifestamente uma tarefa muito mais importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade, pois o bem não é seguramente amável mesmo para um indivíduo, mas é mais belo e mais divino aplicado a uma nação ou à Cidade.

Platão identificara a justiça no indivíduo e a justiça na polis. Aristóteles subordina o bem do indivíduo ao Bem Supremo da polis. Esse vínculo interno entre ética e política significava que as qualidades das leis e do poder dependiam das qualidades morais dos cidadãos e vice-versa, das qualidades da Cidade dependiam as virtudes dos cidadãos. Somente na Cidade boa e justa os homens poderiam ser bons e justos; e somente homens bons e justos são capazes de instituir uma Cidade boa e justa.

Romanos: a construção do príncipe

Após o primeiro período de sua história política, a época arcaica e lendária dos reis patriarcais, semi-humanos e semidivinos, Roma torna-se uma república aristocrática governada pelos grandes senhores de terras, os patrícios, e pelos representantes eleitos pela plebe, os tribunos da plebe. O poder cabe a uma instituição designada como o Senado e o Povo Romano, que pode, em certas circunstâncias previstas na lei, receber os “homens novos”, isto é, os plebeus que, por suas riquezas, casamentos ou feitos militares, passam a fazer parte do grupo governante. Roma é uma república por três motivos principais: 1. o governo está submetido a leis escritas impessoais; 2. a res publica (coisa pública) é o solo público romano, distribuído às famílias patrícias, mas pertencentes legalmente a Roma; 3. o governo administra os fundos públicos (recursos econômicos provenientes de impostos, taxas e tributos), usando-os para a construção de estradas, aquedutos, templos, monumentos e novas cidades, e para a manutenção dos exércitos.

No centro do governo estavam dois cônsules, eleitos pelo Senado e pelo Povo Romano, aos quais eram entregues dois poderes: o administrativo (gestão dos fundos e serviços públicos) e o imperium, isto é, o poder judiciário e militar. O Senado reservava para si duas autoridades: o conselho dos magistrados e a autoridade moral sobre a religião e a política.

República oligárquica, Roma é uma potência com vocação militar. Em 50 anos, conquista todo o mundo conhecido, com exceção da Índia e da China. Esse feito é obra militar dos cônsules que, como dissemos, foram investidos com o imperium (poder judiciário e militar). São imperadores.

Pouco a pouco, à medida que Roma se torna uma potência mundial, alguns dos cônsules (Júlio César, Numa, Pompeu) reivindicam mais poder e mais autoridade, que lhes vão sendo concedidos pelo Senado e pelo Povo Romano. Gradualmente, sob a aparência de uma república aristocrática, instala-se uma república monárquica, que se inicia com Júlio César e se consolidará nas mãos de Augusto. Com ele, a monarquia irá perdendo o caráter republicano até substituir o consulado, tornando-se senhorial e instituir-se como Principado. O príncipe é imperador: chefe militar, detentor do poder judiciário, magistrado, senhor das terras do império romano, autoridade suprema.

Essa mudança transparece na teoria política. Embora esta continue afirmando os valores republicanos – importância das leis, do direito e das instituições públicas, particularmente do Senado e Povo Romano – a preocupação dos teóricos estará voltada para a figura do príncipe.

Inspirando-se no governante-filósofo de Platão, os pensadores romanos, como Cícero e Sêneca, produzirão o ideal do príncipe perfeito ou do Bom Governo. A nova teoria política mantém a idéia grega de que a comunidade política tem como finalidade a vida boa ou a justiça, identificada com a ordem, harmonia ou concórdia no interior da Cidade. No entanto, agora, a justiça dependerá das qualidades morais do governante. O príncipe deve ser o modelo das virtudes para a comunidade, pois ela o imitará.

Na verdade, os pensadores romanos viram-se entre duas teorias: a platônica, que pretendia chegar à política legítima e justa educando virtuosamente os governantes; e a aristotélica, que pretendia chegar à política legítima e justa propondo qualidades positivas para as instituições da Cidade, das quais dependiam as virtudes dos cidadãos. Entre as duas, os romanos escolheram a platônica, mas tenderam a dar menor importância à organização política da sociedade (as três classes platônicas) e maior importância à formação do príncipe virtuoso.

O príncipe, como todo ser humano, é passional e racional, porém, diferentemente dos outros humanos, não poderá ceder às paixões, mas apenas à razão. Por isso, deve ser educado para possuir um conjunto de virtudes que são próprias do governante justo, ou seja, as virtudes principescas. O verdadeiro vir (varão, em latim) possui três séries de virtutes ou qualidades morais. A primeira delas é comum a todo homem virtuoso, sendo constituída pelas quatro virtudes cardeais: sabedoria ou prudência, justiça ou eqüidade, coragem e temperança ou moderação. A segunda série constitui o conjunto das virtudes propriamente principescas: honradez ou disposição para manter os princípios em todas as circunstâncias, magnanimidade ou clemência, isto é, capacidade para dar punição justa e para perdoar, e liberalidade, isto é, disposição para colocar sua riqueza a serviço do povo. Finalmente, a terceira série de virtudes refere-se aos objetivos que devem ser almejados pelo príncipe virtuoso: honra, glória e fama.

Cícero insiste em que o verdadeiro príncipe é aquele que nunca se deixa arrastar por paixões que o transformem numa besta. Não pode ter a violência do leão nem a astúcia da raposa, mas deve, em todas as circunstâncias, comportar-se como homem dotado de vontade racional. O príncipe será o Bom Governo se for um Bom Conselho, isto é, sábio, devendo buscar o amor e o respeito dos súditos.

Em contraponto ao Bom Governo, a teoria política ergue o retrato do tirano ou o príncipe vicioso: bestial, intemperante, passional, injusto, covarde, impiedoso, avarento e perdulário, sem honra, fama ou glória, odiado por todos e de todos temeroso. Inseguro e odiado, rodeia-se de soldados, vivendo isolado em fortalezas, temendo a rua e a corte.

A teoria do Bom Governo deposita na pessoa do governante a qualidade da política e faz de suas virtudes privadas, virtudes públicas. O príncipe encarna a comunidade e a espelha, sendo por ela imitado tanto na virtude quanto no vício.

O poder teológico-político: o cristianismo

Para compreendermos as teorias políticas cristãs precisamos ter em mente as duas tradições que o cristianismo recebe como herança e sobre as quais elaborará suas próprias idéias: a hebraica e a romana.

Os hebreus, embora tenham conhecido várias modalidades de governo – patriarcas, juízes, reis -, deram ao poder, sob qualquer forma em que fosse exercido, uma marca fundamental irrevogável: o caráter teocrático. Em outras palavras, consideravam eles que o poder, em sua plenitude e verdade, pertence exclusivamente a Deus e que este, por meio dos anjos e dos profetas, elege o dirigente ou os dirigentes. O poder (kratos) pertence a Deus (theos), donde: teocracia. Além disso, os hebreus se fizeram conhecer não só como Povo de Deus, mas também como Povo da Lei (a lei divina doada a Moisés e codificada por escrito). A legalidade era algo tão profundo que, quando o cristianismo se constitui como nova religião, fala-se na Antiga Lei (a aliança de Deus com o povo, prometida a Noé, Abraão e dada a Moisés) e na Nova Lei (a nova aliança de Deus com o povo, através do messias Jesus).

Do lado romano, o processo que viemos descrevendo acima prosseguiu e, no período em que o cristianismo se expande e se encontra em vias de tornar-se religião oficial do Império Romano, o príncipe já se encontra investido de novos poderes. Sendo Roma senhora do Universo, o imperador romano tenderá a ser visto como senhor do Universo, ocupando o topo da hierarquia do mundo, em cujo centro está Roma, a Cidade Eterna.

Ao imperador – ou ao césar[ii] – cabe manter a harmonia e a concórdia no mundo, a pax romana, garantida pela força das armas. Com isso, o príncipe passou a enfeixar em suas mãos todos os poderes, que antes cabiam ao Senado e Povo Romano, foi sendo sacralizado, à maneira do déspota oriental, até ser considerado divino, sendo-lhe atribuídos poderes que pertenciam a Júpiter: fundador do povo, restaurador da ordem universal e salvador do Universo.

Para cumprir suas tarefas, o poder imperial centralizado e hierarquizado, desenvolve um complexo sistema estatal em que prevalece o poderio dos funcionários imperiais (civis e militares), que se estende como uma rede intrincada de pequenos poderes por todo o território do Império Romano.

A elaboração da teoria política cristã como teologia política resultará da apropriação dessa dupla herança pelo poder eclesiástico.

A instituição eclesiástica

Quando estudamos a ética, vimos que o cristianismo, diferentemente da maioria das religiões antigas, não surge como religião nacional ou de um povo ou de um Estado determinados. No entanto, ele deveria ter sido uma religião nacional, uma vez que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico. Em outras palavras, se Jesus tivesse sido vitorioso, teria sido capitão, rei e sacerdote, pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado. Derrotado pela monarquia judaica, que usara o poder do Império Romano para julgá-lo e condená-lo, Jesus ressurge (ressuscita) como figura puramente espiritual, rei de um reino que não é deste mundo. O cristianismo se constitui, portanto, à margem do poder político e contra ele, pois os “reinos deste mundo” serão, pouco a pouco, vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano.

Separado da ordem política estatal, o cristianismo será organizado de maneira semelhante a outras crenças religiosas não oficiais: tomará a forma de uma seita religiosa. Nessa época, seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam a polis como referência – pois Roma tudo dominava imperialmente – não podiam mais dirigir-se a uma comunidade política determinada, a um povo determinado, e por isso dirigiam-se ao ser humano em geral, sem distinção de nação ou povo.

O poder imperial romano criara, sem o saber, a idéia do homem universal, sem pátria e sem comunidade política. O cristianismo será uma seita religiosa dirigida aos seres humanos em geral, com a promessa de salvação individual eterna. À idéia política da lei escrita e codificada em regras objetivas contrapõe a idéia de lei moral invisível (o dever à obediência a Deus e o amor ao próximo), inscrita pelo Pai no coração de cada um.

Todavia, a seita cristã irá diferenciar-se de outras porque a herança judaica – dos primeiros apóstolos – e romana – dos primeiros padres – conduzirá à idéia de povo (de Deus) e de lei (de Deus), isto é, a duas idéias políticas. A seita cristã é uma comunidade cujos membros formam o povo de Deus sob a lei de Deus. Essa comunidade é feita de iguais – os filhos de Deus redimidos pelo Filho -, que recebem em conjunto a Palavra Sagrada e, pelo batismo e eucaristia, participam da nova lei – a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho. A comunidade é a ekklesia, isto é, a assembléia dos fiéis, a Igreja. E esta é designada como reino de Deus. Povo, lei, assembléia e reino: essas palavras indicam, por si mesmas, a vocação política do cristianismo, pois escolhe para referir-se a si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana.

A ekklesia organiza-se a partir de uma autoridade constituída pelo próprio Cristo quando, na última ceia, autoriza os apóstolos a celebrar a eucaristia (o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias) e, no dia de Pentecostes, ordena-lhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa Nova (o Evangelho).

A autoridade apostólica não se limita a batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e dele desligá-los, quando lhes disse, através de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado no Céu”[iii]. Está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus; e é superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado por sedução demoníaca.

A ekklesia, comunidade de bons e justos, separada do Estado e do poder imperial, organiza-se com normas e regras que estabelecem hierarquias de autoridade e de poder, formando o que o romano santo Agostinho chamará de Civitas Dei, a Cidade de Deus, oposta à Cidade dos Homens, injusta e satânica, isto é, Roma.

Essa instituição eclesiástica conseguirá converter o imperador Constantino, transformará o cristianismo em religião oficial do Império Romano e absorverá a estrutura militar e burocrática do Império em sua própria organização.

O poder teológico-político

O poderio da Igreja cresce à medida que se esfacela e desmorona o Império Romano. Dois motivos levam a esse crescimento: em primeiro lugar, a expansão do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos, realizada pelos padres nos territórios do Império Romano e para além deles; em segundo lugar, porque o esfacelamento de Roma, do qual resultará, nos séculos seguintes, a formação sócio-econômica conhecida como feudalismo, fragmentou a propriedade da terra (anteriormente, tida como patrimônio de Roma e do imperador) e fez surgirem pequenos poderes locais isolados, de sorte que o único poder centralizado e homogeneamente organizado era o da Igreja.

A Igreja (tanto em Roma quanto em Bizâncio, tanto no Ocidente quanto no Oriente) detém três poderes crescentes, à medida que o Império decai: 1. o poder religioso de ligar os homens a Deus e dele desligá-los; 2. o poder econômico decorrente de grandes propriedades fundiárias acumuladas no correr de vários séculos, seja porque os nobres do Império, ao se converterem, doaram suas terras à instituição eclesiástica, seja porque esta recebera terras como recompensa por serviços prestados aos imperadores; 3. o poder intelectual, porque se torna guardiã e intérprete única dos textos sagrados – a Bíblia – e de todos os textos produzidos pela cultura greco-romana – direito, filosofia, literatura, teatro, manuais de técnicas, etc. Saber ler e escrever tornou-se privilégio exclusivo da instituição eclesiástica. Será a Igreja, portanto, a formuladora das teorias políticas cristãs para os reinos e impérios cristãos. Essas teorias elaborarão a concepção teológico-política do poder, isto é, o vínculo interno entre religião e política.

As teorias teológico-políticas

Na elaboração da teologia política, os teóricos cristãos dispunham de três fontes principais: a Bíblia latina, os códigos dos imperadores romanos, conhecidos como Direito Romano, e as idéias retiradas de algumas poucas obras conhecidas de Platão, Aristóteles e sobretudo Cícero.

De Platão, vinha a idéia da comunidade justa, organizada hierarquicamente e governada por sábios legisladores. De Aristóteles, vinha a idéia de que a finalidade do poder era a justiça, como bem supremo da comunidade. De Cícero, a idéia do Bom Governo do príncipe virtuoso, espelho para a comunidade. De todos eles, a idéia de que a política era resultado da Natureza e da Razão.

No entanto, essas idéias filosóficas precisavam ser conciliadas com a outra fonte do conhecimento político, a Bíblia. E a conciliação não era fácil, uma vez que a Escritura Sagrada não considera o poder como algo natural e originado da razão, mas proveniente da vontade de Deus, sendo, portanto, teocrático.

A Bíblia, como se sabe, é um conjunto de textos de proveniências, épocas e autores muito diferentes, escritos em várias línguas – hebraico, aramaico, grego, etc. – e formando dois grupos principais, o Antigo e o Novo Testamento. Ao ser traduzida para o latim, os tradutores só dispunham da língua culta romana e dos textos que formavam o chamado Direito Romano. A tradução verteu os diferentes textos para a linguagem latina clássica, fazendo prevalecer a língua jurídica e legal romana, combinando, assim, a forte tradição legalista judaica e a latina. Essa Bíblia latinizada servirá de base para as teorias políticas e fornecerá os critérios para decidir o que aceitar e o que recusar das idéias de Platão, Aristóteles e Cícero, combinando de maneira complexa e, às vezes, pouco aceitável, as concepções filosóficas e as teocráticas.

As teorias do poder teológico-político, embora tenham recebido diferentes formulações no correr da Idade Média, variando conforme as condições históricas exigiam, apresentavam os seguintes pontos em comum:

? o poder é teocrático, isto é, pertence a Deus e dele vem aos homens por ele escolhidos para representá-lo. O fundamento dessa idéia é uma passagem do Antigo Testamento onde se lê: “Todo poder vem do Alto / Por mim reinam os reis e governam os príncipes”[iv]. O poder é um fator divino ou uma graça divina e o governante não representa os governados, mas representa Deus perante os governados. O regime político é a monarquia teocrática em que o monarca é rei pela graça de Deus. A comunidade política se forma pelo pacto de submissão dos súditos ao rei;

? o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei. O rei é, portanto, a fonte da lei e da justiça – afirma-se que é pai da lei e filho da justiça. Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus, está acima das leis e não pode ser julgado por ninguém, tendo poder absoluto. O fundamento dessa idéia é retirado de um preceito do Direito Romano que afirma: “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu”.

Se não foi o povo quem deu o poder ao rei, pois o povo não tem o poder, uma vez que este a Deus pertence, o povo também não pode julgar o rei nem tirar-lhe o poder. Se um rei for tirânico e injusto, nem assim os súditos podem resistir-lhe nem depô-lo, pois ele está no poder pela vontade de Deus, que, para punir os pecados do povo, o faz sofrer sob um tirano. Este é um flagelo de Deus. Porque o poder vem do alto, porque o rei é pai da lei e está acima dela, e porque os súditos fizeram o pacto de submissão, o rei é intocável;

? o príncipe cristão deve possuir o conjunto das virtudes cristãs – fé, esperança e caridade – e o conjunto das virtudes definidos por Cícero e Sêneca como próprias do Bom Governo. Sendo o espelho da comunidade, em sua pessoa devem estar encarnadas as qualidades cristãs que a comunidade deve imitar.

Mesmo que considere a política algo natural – como dizia Aristóteles e dirão vários teólogos, como são Tomás de Aquino – e mesmo que se considere que a comunidade política é obra da razão – como diziam Platão e Cícero e afirmarão vários teólogos, como Guilherme de Ockham -, ainda assim, a finalidade suprema do poder político, isto é, o bem e a justiça, não são estritamente terrenos ou temporais, mas espirituais. O príncipe é responsável pela finalidade mais alta da política: a salvação eterna de seus súditos;

? a comunidade e o rei formam o corpo político: a cabeça é a coroa ou o rei, o peito é a legislação sob a guarda dos magistrados e conselheiros do rei, os membros superiores são os senhores ou barões que formam os exércitos do rei e a ele estão ligados por juramento de fidelidade ou de vassalagem, e os membros inferiores são o povo que trabalha para o sustento do corpo político. A polis platônica é, assim, transformada no corpo político do rei;

? a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus e natural. O mundo é um cosmos, isto é, uma ordem fixa de lugares e funções que cada ser (minerais, vegetais, animais e humanos) ocupa necessariamente e nos quais realiza sua natureza própria. Os seres do cosmos estão distribuídos em graus e o grau inferior deve obediência ao superior, submetendo-se a ele.

No caso da comunidade política, a hierarquia obedece aos critérios das funções e da riqueza, formando ordens sociais e corpos ou corporações que são órgãos do corpo político do rei. Não existe a idéia de indivíduo, mas de ordem ou corporação a que cada um pertence por vontade divina, por natureza e por hereditariedade, ninguém podendo subir ou descer na hierarquia a não ser por vontade expressa do rei. Cada um nasce, vive e morre no mesmo lugar social, transmitindo-o aos descendentes.

Esse papel central que as teorias conferem à idéia de cosmos hierárquico responde a três exigências práticas: manter a concepção imperial romana e eclesiástica, manter a concepção teocrática judaica e, sobretudo, oferecer uma garantia teórico-política a uma sociedade fragmentada em propriedades isoladas e espalhadas pelo antigo território do Império para as quais já não existe a referência urbana de Roma;

? no topo da hierarquia encontram-se o papa e o imperador. O primeiro exige o poder espiritual, o segundo, o temporal. Dada a ruralização da vida econômico-social e sua fragmentação, cada região possui um conjunto de senhores que escolhe um rei entre seus pares, garantindo-lhe – e à sua dinastia – a permanência indefinida no poder. Este só passa a outro rei se o reinante morrer sem herdeiro do sexo masculino, ou se trair seus pares e for por eles deposto, ou se houver uma guerra na qual seja derrotado e o vencedor tenha força para reivindicar o poder régio. A assembléia dos reis subordina-se ao Grande Rei ou imperador da Europa (Sacro Império Romano-Germânico), que possui o poder teocrático, isto é, ele é escolhido por Deus e não pelos outros reis;

? a justiça, finalidade da comunidade cristã, é a hierarquia de submissão e obediência do inferior ao superior, pois é essa a ordem natural criada pela lei divina. A vida temporal é inferior à vida espiritual e por isso a finalidade maior do governante é a salvação da alma imortal de seus súditos, pela qual responderá perante Deus.

Auctoritas e potestas

O vocabulário da política romana distinguia auctoritas e potestas: a primeira é o poder no sentido pleno, isto é, a autoridade para promulgar as leis e fazer a justiça; a segunda é o poder de fato para administrar coisas e pessoas. A primeira é fundadora da comunidade política; a segunda, a atividade executiva. A vida política cristã, durante toda a Idade Média, viu-se envolvida no conflito entre esses dois poderes, pois é evidente que um deles está subordinado ao outro e que a potestas e inferior à auctoritas.

No início da Idade Média não há conflito. O papa possui a autoridade espiritual, voltada para a salvação, enquanto os reis possuem a autoridade legal e a potência administrativa temporais. Pouco a pouco, porém, o conflito entre as duas autoridades se instala, expressando-se na chamada querela das investiduras.

Padres e bispos são administradores da Igreja no interior dos reinos e do conjunto formado por eles, o Sacro Império Romano-Germânico. Se são administradores, devem ser investidos em seus cargos pelo rei e pelo imperador. Isso significa, porém, que reis e imperadores passam a intervir na autoridade da Igreja e do papa, o que, para ambos, é inaceitável. Os juristas eclesiásticos elaboram uma legislação, o direito canônico, para garantir o poder do papa na investidura de padres e bispos. Essa elaboração, gradualmente, leva à teoria do poder papal como autoridade suprema à qual deve submeter-se o imperador.

As teorias teológico-políticas foram elaboradas para resolver dois conflitos que atravessam toda a Idade Média: o conflito entre o papa e o imperador, de um lado, e entre o imperador e as assembléias dos barões, de outro.

O conflito papa-imperador é conseqüência da concepção teocrática do poder. Se Deus escolhe quem deverá representá-lo, dando o poder ao escolhido, quem é este: o papa ou o imperador?

A primeira solução encontrada, após a querela das investiduras, foi trazida pelos juristas de Carlos Magno, com a teoria da dupla investidura: o imperador é investido no poder temporal pelo papa que o unge e o coroa; o papa recebe do imperador a investidura da espada, isto é, o imperador jura defender e proteger a Igreja, sob a condição de que esta nunca interfira nos assuntos administrativos e militares do império. Assim, o imperador depende do papa para receber o poder político, mas o papa depende do imperador para manter o poder eclesiástico.

O conflito entre o imperador e as assembléias dos barões e reis diz respeito à escolha do imperador. Este conflito revela o problema de uma política fundada em duas fontes antagônicas. De fato, barões e reis invocam a chamada Lei Régia Romana, segundo a qual o governante recebe do povo o poder, sendo, portanto, ocupante eleito do poder. Barões e reis afirmam que são os instituidores do imperador. Este, porém, invoca a Bíblia e a origem teocrática do poder, afirmando que seu poder não vem dos barões e reis, mas de Deus.

A solução será trazida pela teoria que distingue entre eleição e unção. O imperador, de fato, é eleito pelos pares para o cargo, mas só terá o poder através da unção com óleos santos – afirma-se que é ungido com o mesmo óleo que ungiu Davi e Salomão – e quem unge o imperador é a Igreja, isto é, o papa.

Como se observa, a teoria da dupla investidura e da distinção entre eleição e unção deixa o imperador à mercê do papa. Para fortalecer o imperador contra o papa, os reis e os barões, é elaborada uma teoria, que, mais tarde, sustentará as teorias da monarquia absoluta por direito divino. Trata-se da teologia política dos dois corpos do rei (isto é, do imperador).

Um rei-pela-graça-de-Deus é a imitação de Jesus Cristo. Jesus possui duas naturezas: a humana, mortal, e a mística ou divina, imortal. Como Jesus, o rei tem dois corpos: um corpo humano, que nasce, vive, adoece, envelhece e morre, e um corpo místico, perene e imortal, seu corpo político. O corpo político do rei não nasce, nem adoece, envelhece ou morre. Por isso, ninguém, a não ser Deus, pode lhe dar esse corpo, e ninguém, a não ser Deus, pode tirar-lhe tal corpo. Não o recebe nem dos barões e reis, nem do papa, e não pode ser-lhe tirado pelos reis, pelos barões ou pelo papa.

O que é o corpo místico-político do rei? A coroa, o cetro, o manto, a espada, o trono, as terras, as leis, os impostos e tributos e seus descendentes ou sua dinastia. Filho da justiça, pai da lei, marido da terra e de tudo o que nela existe, o rei é inviolável e eterno porque é imitação do Cristo e imagem de Deus. Nem eleito nem deposto por ninguém, o poder político do rei o coloca fora e acima da comunidade, tornando-o transcendente a ela.

Em relação ao papa, a teoria dos dois corpos do rei dá ao imperador uma força teológica semelhante àquela que a doação das Chaves do Reino dava ao Vigário de Cristo. Em relação aos reis e barões, a teoria dá ao imperador a inviolabilidade do cargo e, mais do que isso, faz com que seja ele o doador de poder a seus inferiores. Reis e barões terão poder por um favor do imperador, assim como este recebe poder por um favor de Deus.

O dualismo do poder

No final da Idade Média, sobretudo com a retomada das obras de Aristóteles pelos teólogos, haverá um esforço para separar a Cidade de Deus – a Igreja – e a Cidade dos Homens – a comunidade política.

Considera-se que a primeira foi instituída e fundada diretamente por Deus com a doação das Chaves do Reino aos apóstolos, mas a segunda foi instituída ou fundada pela Natureza, que fez o homem um ser racional e um animal político. Sem dúvida, a boa cidade é a cidade dos homens cristã, em harmonia com a Cidade de Deus, mas as instituições políticas devem ser consideradas humanas, criadas em concordância com a ordem e a lei naturais, derivadas da lei divina eterna.

Um dos teóricos mais importantes da naturalidade da política é o teólogo são Tomás de Aquino, para quem, sendo o homem um animal social, a sociabilidade natural já existia no Paraíso, antes da queda e da expulsão dos seres humanos. Após o pecado original, os seres humanos não perderam sua natureza sociável e, por isso, naturalmente organizaram-se em comunidades, deram-se leis e instituíram as relações de mando e obediência, criando o poder político.

Diferentemente de santo Agostinho, para quem o pecado tornara o homem perverso e violento, injusto e fundador da Cidade dos Homens, injusta como ele, para são Tomás, os humanos perderam a inocência original, mas não perderam a natureza original que lhes fora dada por Deus. Por esse motivo, neles permaneceu o senso de justiça, entendida como o dever de dar a cada um o que lhe é devido, e com ela fundaram a comunidade política.

A finalidade da comunidade política é a ordem – o inferior deve obedecer ao superior – e a justiça – dar a cada um segundo suas necessidades e méritos. Ordem e justiça definem a comunidade política como o único instrumento humano legítimo para assegurar o bem comum.

Na mesma linha de separação entre poder espiritual da Igreja e poder temporal da comunidade política, encontra-se o teólogo inglês Guilherme de Ockham, que, para melhor definir a justiça e o bem comum, introduz a idéia de direito subjetivo natural.

Para que a comunidade política possa realizar a justiça, isto é, dar a cada um o que lhe é devido segundo suas necessidades e seus méritos, é preciso que o legislador e o magistrado possuam um critério ou uma medida que defina o justo. Essa medida é o direito subjetivo natural de cada um e de todos os homens como o direito à vida, à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à garantia da vida e da consciência.

Com são Tomás e Ockham, novas idéias são trazidas à teoria política, ainda que continue teológica, isto é, referida à vontade suprema de Deus. Diante da tradição teocrática medieval, são novas as idéias de comunidade política natural, lei humana política e direito natural dos indivíduos como sujeitos dotados de consciência e de vontade.

Os dois teólogos mantêm a idéia de bom governo do príncipe cristão virtuoso e a de que a monarquia é a forma natural e melhor de governo, a mais adequada para realizar a justiça como bem comum. Conservam também a idéia de hierarquia natural criada pela lei divina eterna e concretizada pela lei natural. Finalmente, introduzem o primeiro esboço do que viria a ser conhecido, com a Reforma Protestante, como o direito de resistência dos súditos do tirano.

Os governados não podem depor nem matar o tirano, mas podem resistir a ele, buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade, forçando-o a abdicar do poder. Um dos instrumentos legais mais importantes para isso é a idéia de direito subjetivo natural: quando este é violado pelo governante, o governo se torna ilegítimo, o pacto de submissão perde a validade e o governante deve abdicar do poder.

[i] Os termos compostos com cracia são: autos, eu mesmo, eu próprio, si mesmo; aristos, o melhor, o mais excelente; demos, o povo.

[ii] Título dos imperadores romanos de Augusto (63 a.C.-14 a.C.) a Adriano (76-138). [Nota de Pausa para a Filosofia.]

[iii] Mt 16.18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus.” [Nota de Pausa para a Filosofia.]

[iv] Pv 8.15-16: “Por meu intermédio reinam os reis, e os príncipes decretam justiça. Por meu intermédio governam os príncipes, os nobres e todos os juízes da terra.” [Nota de Pausa para a Filosofia.]