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Textos

Isabel, a imperatriz que o Brasil não teve

Biografia de brasilianista analisa papel da princesa como mulher do século XIX
Por Ricardo Bonalume Neto

Princesa Isabel em trajes de passeio, de Carneiro e Gaspar de Courtois; óleo sobre tela do século XIX

Graças ao despreparo dos políticos brasileiros de hoje, livros sobre personagens do Império tornam-se involuntariamente uma espécie de literatura escapista. Será difícil identificar, no panorama político atual, homens públicos com a envergadura de um visconde do Rio Branco ou de um Joaquim Nabuco. Mesmo não sendo essa a intenção do autor, a biografia da princesa Isabel (1846-1921) escrita por Roderick J. Barman também deixa esse gostinho de "ai que saudades do Império".

Barman é autor de Brazil: the forging of a nation, 1798-1852 (Brasil: a formação de uma nação) e de Citizen emperor: Pedro II and the making of Brazil, 1825-1852 (Imperador cidadão: Pedro II e a construção do Brasil). Ganhou o prêmio Warren Dean de 2001 pelo melhor livro de história do Brasil. Atualmente, escreve um novo volume: Brazil: the burdens of nationhood, 1852-1930 (Brasil: os fardos da nacionalidade).

Princesa Isabel do Brasil - gênero e poder no século XIX é a primeira biografia moderna da princesa mais conhecida por ter assinado a Lei Áurea, libertando os escravos em 13 de maio de 1888. Mas vai bem além disso o interesse pela vida de dona Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança. Isabel foi biografada antes por Pedro Calmon e Hermes Vieira, em livros publicados em 1941, e por Lourenço Lacombe, em 1989. Esse novo livro do pesquisador inglês e professor da Universidade de British Columbia, no Canadá, se insere dentro de um modismo histórico que é a história do "gênero", mais especificamente o feminino.

A infante Isabel de Bragança, aos 5 anos de idade

Por que falar em gênero e não em sexo? Barman mostra que o conceito surge como parte da rejeição do feminismo ao patriarcalismo dominante, e tem como marco o livro O segundo sexo, da francesa Simone de Beauvoir, de 1949, e o trabalho posterior de historiadoras como Natalie Zemon Davis, pioneira da história das mulheres. "Recorrendo à frase famosa de Simone de Beauvoir, 'ninguém nasce, mas se transforma em mulher'. Seu livro iniciou a guinada que levou a encarar as diferenças entre homens e mulheres como constructos sociais. As diferenças são criadas, não frutos da biologia."

Felizmente, Barman não caiu no extremo de levar isso totalmente a sério, e o próprio livro dá claros exemplos do porquê. Ser homem ou ser mulher não é um mero "constructo" social, assim como o planeta Marte não o é - ele está de fato lá no espaço. A biologia tem mostrado cada vez mais diferenças, até no cérebro, entre homens e mulheres, sem que isso sirva para atiçar preconceito.

"O uso do gênero como categoria de análise leva a questionar proposições estabelecidas há muito tempo entrincheiradas, referentes à organização básica da sociedade humana, inclusive ao binário masculino-feminino. Os próprios conceitos homem e mulher se dissolvem. Mulheres e homens abrangem uma ampla gama de sexualidades, identidades e características comportamentais e de temperamento", escreve o autor.

OK, e daí? O próprio Barman mostra que a "desconstrução" não pode ser extremada: "A objeção, numa desconstrução tão cabal, que tudo reduz ao relativo e ao condicional, é que o gênero nada tem de neutro no funcionamento das sociedades humanas. Ele é fundamental no exercício do poder, que resulta em dominação e subordinação".

Essa introdução é necessária para situar o livro. Uma biografia de um personagem histórico serve, segundo Barman, a uma abordagem do passado que tanto respeite a cultura da sociedade estudada, permitindo aos personagens falar com sua própria voz, como também para situar o tópico em um contexto histórico mais amplo que permita entender o funcionamento dessa sociedade.

Isabel foi preparada para ser a herdeira do trono. Não fosse a quartelada de 15 de novembro de 1889, teria sucedido ao pai, d. Pedro II, como Isabel I. Foi regente do trono durante três momentos, totalizando mais de três anos como chefe de Estado. "História alternativa" é outra moda, mas Isabel poderia ter sido algo como a rainha britânica Vitória, longeva monarca presidindo sobre uma era de prosperidade crescente e paz social.

O livro de Barman vai mostrando a progressão da tímida princesa não muito bonita em uma potencial imperatriz. Isabel foi assumindo papéis ao longo da vida, e os títulos dos capítulos refletem essa evolução - "A filha, 1846-1864"; "A noiva, 1864-65"; "A esposa, 1865-1872"; "A mãe, 1872-1881"; "A aspirante a imperatriz, 1881-1889"; e "A mulher dona de si, 1889-1921".

Isabel e sua irmã mais moça, d. Leopoldina, tiveram adolescência reclusa. "D. Pedro II acreditava na reclusão estrita como a melhor maneira de proteger as filhas de experiências inadequadas, porém esse mesmo isolamento as mantinha na ignorância de como realmente vivia a maioria dos brasileiros e circunscrevia- lhes a capacidade de plasmar sua própria identidade", afirma o autor.

Apesar disso, as duas receberam educação de qualidade, como convinha a quem poderia um dia subir ao trono. "A instrução não deve diferir da que se dá aos homens, combinada com a do outro sexo, mas de modo que não sofra a primeira", é como pensavam d. Pedro e Teresa Cristina.

As duas saíram direto do interior da família real para o noivado e o casamento. Uniões dinásticas eram planejadas com anos de antecedência. Segundo Barman, já em 1855, quando Isabel e Leopoldina tinham meros nove e oito anos, d. Pedro já especulava sobre seus maridos. A idéia de casar com alguém da família real portuguesa foi aventada, mas descartada devido à oposição dos brasileiros em geral. Seria como voltar aos tempos da colonização. Não havendo nobres brasileiros, os maridos tinham que vir de casas reais européias de religião católica. Isabel casou com Gastão d'Orléans, o conde d'Eu, e Leopoldina com August de Saxe-Coburg-Gotha.

Não havia nada de romântico na união de Isabel, a princípio. Em carta à irmã, o conde foi sincero: "Anteontem, 18 de setembro, eu decidi aceitar a mão da princesa imperial. Acho-a mais capaz do que a irmã caçula de assegurar a minha felicidade doméstica; o país no qual ela deve ter sua residência principal não me desagradou; e eu vejo a possibilidade de tudo conciliar com viagens à Europa, a cuja duração e a cuja freqüência não me impuseram nenhum limite."

O noivo sabia que o enlace era uma transação política: "Mas, para que não te surpreendas ao conhecer minha Isabel, aviso-te que ela nada tem de bonito; tem sobretudo uma característica que me chamou a atenção. É que lhe faltam completamente as sobrancelhas. Mas o conjunto de seu porte e de sua pessoa é gracioso."

A história dos dois não chega a ser um conto de fadas, mas teve final feliz. Passaram a gostar da companhia um do outro.

D. Pedro II não era um imperador festeiro. Quase não dava bailes. Foi só em viagens à Europa que a princesa pôde tomar gosto por bailes, recepções e demais passatempos da vida aristocrática. Sentia-se em casa entre a nobreza européia, entre os quais muitos eram parentes. Esteve com a rainha Vitória, do Reino Unido, que comentou a visita no seu diário: "(...) Gastão com sua esposa brasileira Isabelle, que é a futura imperatriz do Brasil. Ela é muito serena, modesta e espontânea, e parece boa e gentil. Nós passamos algum tempo juntos antes do almoço, depois eles foram embora."

Isabel era poliglota e recebeu instrução de qualidade; só não foi preparada para ser brasileira, afirma Roderick Barman

Mesmo uma princesa, ou principalmente por isso, tinha a obrigação de ter filhos. Ser mãe era o destino da mulher século XIX. Rainhas e princesas tinham que produzir herdeiros para o trono. Para Barman, "d. Isabel pertencia perfeitamente ao mundo das mulheres casadas", tanto que "definia-se em termos de maternidade", como deixa claro uma carta dela ao marido: "Eu quero tanto ser a mãe do teu filho, ter um filho de quem eu amo tanto, de quem eu amo acima de tudo, meu amor!!!"

Era uma missão arriscada mesmo para mulheres da elite. Morrer no parto ou abortar naturalmente eram fatos comuns. A mortalidade infantil, além da materna, também atingia os nobres.

A década de 1870 foi particularmente delicada para Isabel. Em um espaço de cinco anos ela teve dois abortos, um bebê natimorto e duas gravidezes. Além disso, na esfera pública, ao tornar-se regente, passou a ser assediada e atacada pela imprensa. O nacionalismo brasileiro também se insurgia contra seu marido, chamado de "o francês". Por isso, d. Pedro deu permissão ao casal para residir na Europa por dois anos em 1878. A estada se prolongou por três anos e meio, tanto que, em 1881, nasce em Paris o terceiro filho do casal. Isabel tinha 38 anos.

Aos papéis de esposa e mãe soma-se também o de herdeira do trono e de regente, ocupado durante as viagens do imperador. Foram três momentos distintos, e o último culminou com a assinatura da lei que determinou a abolição da escravatura.

"Na sua primeira regência, a princesa era uma novata e preferia deixar o serviço do governo para o visconde do Rio Branco. A combinação das circunstâncias pessoais com as públicas, durante a segunda regência, em 1877 e 1878, tornou-lhe muito difícil, senão impossível, empenhar-se em promover mudança e aprimoramento. Agora, em 1888, os problemas enfrentados por qualquer um (monarca ou presidente) que governasse o Brasil eram formidáveis a ponto de desafiar a capacidade do mais experimentado governante homem", escreveu Barman.

D. Pedro estava doente e a filha obediente Isabel não queria tomar seu lugar: "A princesa não manobrou para substituir o pai. Os filhos dela, agora com treze, dez e sete anos, eram demasiado jovens para fazê-lo. O poder estava efetivamente vago, e atualmente sabe-se que o príncipe Pedro Augusto alimentava a ambição de ocupá-lo". As manobras do sobrinho contribuíram apenas para desgastar a imagem de Isabel e do marido.

Quando veio o golpe de 15 de novembro, Isabel e o marido tentaram fazer com que d. Pedro reagisse, mas já era tarde. A família real teve 24 horas para sair do país.

Isabel, ao centro, com sua neta d. Pia Maria no colo; e em sentido horário, da esq. para a dir., o neto d. Pedro Henrique; d. Luís e d. Maria Pia, em pé; o conde d' Eu, sentado, com o neto d. Luís Gastão

"É com o coração partido de dor que me afasto de meus amigos, de todos os brasileiros e do país que tanto amei e amo, para cuja felicidade esforcei-me por contribuir e pela qual continuarei a fazer os mais ardentes votos", assinou Isabel, condessa d'Eu, em nota 16 de novembro de 1889.

Não foi exílio tão difícil assim. Isabel era poliglota, o marido era francês, e estavam plenamente adaptados à aristocracia européia. Como diz o autor da biografia, ela teve uma boa educação, só não foi preparada para ser brasileira. "D. Isabel aprendeu a ser elegante e bem comportada, fluente em francês, inglês e alemão, devota e pontual nos deveres religiosos, dedicada à família e às obras de caridade, instruída, se bem que não intelectual, e empenhada em conservar o status quo social, cultural e de gênero. Graças à influência tanto de d. Pedro II quanto da condessa de Barral, aprendeu a ser bicultural e bilíngüe: a França rivalizando com o Brasil como modelo."

Não há dúvida de que gostava do Brasil - "mas esse amor se concentrava principalmente no aspecto físico: as plantas, os animais e a paisagem do país. Na infância e na adolescência, teve pouco contato com os brasileiros, a não ser com os criados, e essa situação não se alterou com o casamento".

Isabel teria sido, talvez, uma boa imperatriz se o cargo fosse mais decorativo e menos atuante, graças ao "poder moderador" do monarca brasileiro. "As condições da sua vida cotidiana a impediram de desenvolver um senso de autonomia condutiva para o exercício do poder político", afirma Barman.

Isabel não mais voltaria ao Brasil. Em maio de 1920, o presidente da República enviou ao Congresso projeto de lei revogando o banimento da família imperial. Em janeiro de 1921, um navio de guerra brasileiro trouxe ao Rio os corpos do imperador e da imperatriz, acompanhados pelo conde d'Eu e Pedro, então o único filho vivo do casal. D. Isabel estava doente demais para a viagem. Morreu em 14 novembro de 1921, em Paris.

http://revistaentrelivros.uol.com.br/edicoes/1/artigo7460-3.asp 10.05.05