Ivo Pitz
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Leitura: Paixão do conhecimento

Paulo Venturelli
Este é um resumo da palestra apresentada no Encontro sobre o ensino de leitura e de escrita, promovido pela Editora Braga, em maio de 1994, no Colégio Nossa Senhora Medianeira, Curitiba. Foi publicado pela Revista Letras, Curitiba, Nº. 44, p. 175-184. 1995. Editora da UFPR.

Resumo
Discutimos, neste artigo, a noção de leitura, visando à superação de visões que a definem como hábito ou gosto. Temos em vista que a leitura é uma prática eminentemente social e que o papel da escola seria ensiná-lo ao aluno, por meio de detalhado esmiuçamento dos constituintes literários de um texto e de sua ampla contextualização. Para tanto, entendemos as fases de leitura como um emperramento para a criação do leitor porque, infantilizado por discursos transparentes, ele não terá possibilidades de crescer diante dos desafios propostos por obras genuinamente literárias que de antemão lhe são recusados como difíceis(1).

Em recente entrevista à imprensa, Herbert de Souza, respondendo a uma questão sobre as chacinas no Brasil, diz: “eu me pergunto se essa não tem sido a nossa história há muito tempo, uma história perversa, cheia de massacres. Existe uma mudança substantiva nos fatos ou o que há, na verdade, é uma mudança importante na percepção dos fatos”?
Imediatamente, somos obrigados a pensar nos mais diversos tipos de manifestação de violência que recobre a história brasileira. A partir da colocação de Betinho, podemos entender que agora estamos lendo o Brasil com uma percepção mais aguda dos fatos. E esta leitura vem ensinar-nos o doloroso exercício de cidadania, quando vamos aprendendo que nosso país não está pronto e o que nos cabe fazer não é fácil, mas também não é impossível.
E é sobre leitura que desejamos refletir. Ainda que já exista uma produção considerável a respeito, acreditamos que no final os caminhos nem sempre ficam claros, porque não estão bem definidas as premissas básicas que regem cada postura. E é delas que procuraremos tratar ao longo destas páginas, tentando centrar nossa atenção nas atividades pr+aticas em sala de aula.
É nossa convicção que a primeira necessidade a aclarar gira em torno da finalidade do ensino da língua portuguesa. Sem dúvida nenhuma, este ensino deveria Ter como meta essencial tornar o aluno um leitor. Simplesmente porque a leitura é um modo privilegiado de a pessoa conseguir uma melhor compreensão de si própria e do mundo. Lendo, ele terá condição de desfrutar da grande culturaque a humanidade vem acumulando em seus esforços para vencer dificuldades. Por si só, esta concepção supera a noção reinante de que leitura é prazer. Claro que é, mas não só.
Entendido como via para o conhecimento e, possivelmente, para a sabedoria, ler implica disciplina e esta é um duro aprendizado.
Certamente, a leitura só terá afetividade, quando for um ato oriundo de uma política cultural mais ampla, como já definiu Edmir Perrotti(2). Como tal política não existe, nossa saída é investir na pessoa de cada aluno, descobrindo qual é sua área de interesse e lutando pelo seu alargamento para poder instalar a leitura como uma prática que realmente vá além de gostos e hábitos, procurando uma elevação do nível de percepção do mundo(3). Dificilmente alguém exposto a livros que tratam de sua alçada deixaria de ler. É aí que entra o papela da escola: abrir amplo leque de possibilidades para apresentar a cada aluno caminhos que venham ao encontro do que ele quer e, ao mesmo tempo, o levem para mundos ignorados. E, se pensarmos na leitura do texto literário, uma proposta adequada de trabalho é aquela que respeita o ritmo do aluno e, concomitantemente, ensina-o a ir além de emanações subjetivas e narcísicas, quando buscamos um nível de objetividade(4), em que a crítica será uma oportunidade de crescimento deste aluno como ser pensante.
Precisamos então esclarecer a essência do problema: o que é ler? Não podemos entender a leitura como algo a depender de um gosto ou de um hábito, esferas por demais mecânicas e evasivas que não dão conta da complexidade deste ato, onde o pessoal, o político, o econômico e o sulturam, enfim, interagem de forma total e contraditória. A leitura é uma prática na qual as referidas determinantes se fazem presentes e configuram atitudes que não são meramente comportamentais. O problema é aclarado, se pensarmos na leitura como um modo de ser, uma vivência. O contato permanente com livros e o seu costante desfrute precisam ser um dos significados fundamentais de nossa existência, sem o que a vida tornar-se-ia mais oca e desesperançada do que muitas vezes já é. Como dirá Bruno Bettelheim, com os livros, podemos entender que é possível viver uma vida significativa, ainda que no íntimo tenhamos muitas dúvidas e incertezas(5).
Correndo o risco de sermos evanescentes e indefinidos, acreditamos que uma profunda paixão do professor pelo livro, pela leitura, pelos autores, pelo pensamento, facilitará o encaminhamento da questão. E paixão é só o outro lado da razão esclarecida, por isso, seu complemento visceral. E se ela não se ensina, ela pode ser aprendida, em nome do que, a postura do professor como grande leitor é a pedra-de-toque de todo o processo. Isso responde à iterrogação feita por Susan Sontag, em sua recente visita ao Brasil: Leitura é uma paixão solitária.Como fazer as pessoas se apaixonarem?|(6). Um professor apaixonado terá no livro sua prioridade máxima, apesar das numerosas dificuldades que todos encontramos no exercício da profissão, e até por causa delas. Sem o livro, não somos profissionais adequados e não teremos como resistir ao desânimo e ao desencanto, sempre tão pródigos em nosso cotidiano. Só no livro é possível refazer as baterias ideológicas, reafirmar os princípios de conduta, aclarar a paisagem.
As interrogações multiformes que emanam de cada texto devem ser nosso conduto para irmos além de uma vida oligofrência e mumificada no senso-comum. Se o professor efetivamente vestir a camisa da literatura, de uma forma ou de outra ele encontrará uma alternativa para transmitir aos alunos uma opção de vida semelhante. Porque o ato de ler pode ser aprendido, desde que o aluno tem há condições de ser colocado em contato com situações deflagradoras do processo de aprendizagem. Lembremos de algo simples: o que e como fazemos para nosso filho torcer para o mesmo time que é nossa paixão? O que o Brasil faz para as pessoas amarem tanto o futebol?
Se ler é uma questão de prática, esta pode ser adquirida com um instrumental eficaz trabalhado pelo professor: desde uma exploração detalhada do processo criativo de uma obra, revelando seus elementos constitutivos, até a mais ampla contextualização da mesma, através das quais o aluno empreenderá o caminho e estabelecerá as relações necessárias para uma leitura e uma interpretação produtivas e enriquecedoras.
Estamos tentando dizer: não existe fase de leitura. Esta história de adequação de livros por idade não passa de um golpe comercial das editoras e de uma concepção por demais simplista do que seja uma criança, do que seja a mente humana e de como ambas se formam. A postura  mais encontradiça é a de que a criança ainda não está desenvolvida, aindaq não tem maturidade, ainda não está pronta para textos complexos(existe algum texto literário que não seja complexo?). Acredita-se, então, que a criança seria capaz de se desenvolver por si só, naturalmente, após o que estaria em condições de enfrentar certos autores. Com certeza, há aí uma trama ideológica para manter crianças e jovens infantilizados para que, sem nenhum empenho crítico, possam ser presas fáceis das mais consumistas armadilhas de que está repleta nossa sociedade. Ora, ficar em níveis de leitura como um critério cristalizado e igual para toda uma turma, selecionar livros por idade, por facilitação do discurso, é reforçar uma pedagogia que aposta no não crescimento do indivíduo. Como alguém pode crescer fazendo somente aquilo de que é capaz? Como alguém pode tornar-se um leitor, enfrentando apenas textos do seu nível e que não exigem nada além de olhar as palavras e decodificá-las? Para alguém crescer, amadurecer, é necessário entrar emcontato com novos desafios e interagir dialogicamente com um nível de formas sempre mais complexas. Afinal, não é assim mesmo que se dá com a vida em todos os campos? Temos condições de ser/fazer no ir-sendo, no ir-fazendo, no convulso emaranhado de propostas e informações que nos atingem o dia todo, a vida toda. Só subimos a escada, dando sempre um passo para o degrau seguinte, e não marchando sobre o mesmo. Enquanto julgamos a criança como imatura, incapaz de ler Y ou Z, obrigamos a mesma a ficar num discurso facilitado, transparente, semque ela tenha oportunidade de encontrar um alimento mais consistente com o qual exercitar sua prática de leitor. Lembremos as palavras de Eduardo Mendonza: “É preciso ensinar a ler livros difíceis, porque lerão os fáceissem que ninguém os estimule. Há que ensinar a se interessar pelas dificuldades, não pela facilidade”(7). Temos implícito, aqui, todo um programa de ensino. Depois, querem Ter razão para espanto diante da desistência escolar, do nível de desinteresse dos estudantes, do seu baixo rendiento. O aluno precisa aprender a ler obras genuinamente literárias que o fustiguem. E já há experiências concretas e bem sucedidas a respeito(8), com professoras que, no contato com crianças de 8 a 10 anos, ensinam de forma profícua a leitura de autores como Kafka, Gumarães Rosa, Graciliano Ramos e outro, tradicionalmente considerados difíceis e, portanto, da alçada apenas dos adultos. Se não bastassem tais fatos, debrucemo-nos sobre outros bastate expressivos: Virgínia Woolf, aos 12 anos, lia tragédias gregas no original e as discutia com famililares; Paulo Leminski, com 8 anos, lia Os Sertões, de Euclides da Cunha e deliciava-se com esta literatura, devidamente acompanhado pelo pai. Isto não comprova que os escritores citados sejam especiais, dotados de genialidade inata que lhes proporcionava condição pessoal para adentrar tais universos. Se por acaso são especiais, isso ocorre porque aprenderama ser assim, tornaram-se assim no duro exercício diário da convivência com textos que lhes exigiam sempre mais, e com suporte num contexto que proporcionava o crescimento. Talento não está no sangue. É conseqüência de um aprendizado. Tratados com papinha literária, nossos alunos jamais terão tônus mental suficientemente firme para agüentar a implosão dos potetnes textos literários dos grandes escritores. Deitados “eternamente em berço esplêncido”, não terão nem o som, nem a luz do aventurado pensamento e da estética, conflagradores de mundos e de vivências que só entenderão na medida em que desde cedo conviverem profundamente, dialeticamente, visceralmente, com as linguagens buriladas pelos autores de nossa atenção, dignos de serem estudados em classe, por isso, clássicos.
E estamos aqui no centroconflitivo de outro tema crucial: inteligência não é um Dom dos deus, é fruto da história de cada um, o que inclui família, escola, relações sociais etc. Nossa inteligência é um processo que se torna o que é, não se subordinando pura e simplesmente ao social, mas também não o precedendo. É sempre a partir do contexto que nos realizamos e, nesta realização, provocamos as transformações nas circunstâncias que nos cercam.Nossa consciência – portanto, nossa inteligência – é sempre expressão de nosso universo individual de interação com os outros, com a multiplicidade de nuances com as quais entramos em contato desde que nascemos. Essencialmente através da palavra é que tudo irá ocorrer, como nos ensina Bakhtin. Através dela, definimo-nos com relação ao que está ao nosso redor e é neste território comum – a palavra – que temos o modo mais vivo de reqalizar nosso nível de pessoa(9). Como afirma Georges Snyders: “ A cada idade corresponde uma forma de vida que tem valor, equilíbrio, coerência, que merece ser respeitada e levada a sério: a cada idade correspondem problemas e conflitos reais, mas tambem recursos e que já demonstraram sua capacidade, pois o tempo todo ela teve que enfrentar situações novas”(10). Um livro, constituindo-se numa situação nova, obviamente auxilia a expansão dos citados recursos. E, na forma tão clara colocada pelo autor francês: “A educação não se reduz a um desenvolvimento do que já estava latente, a uma simples aquiescência às forças espontâneas do ser”(11), porque educar alguém não é só preparar para o futuro. A escola deve tamb+em estar voltada para o agora, para este ser que aqui pensa, sente, ama e experiencia a vida desta ou daquela forma, uma consciência que precisa estar coincidente com o seu presente para expandir-se e fortificar-se e não ser colcocado entre parênteses, num banho-maria de espera do futuro. Dotada para o presente, a criança precisa encontrar neste tempo bases para o que virá amanhã, é óbvio, porém também a grandeza de uma atualidade em que tenha condições de ser em todas as dimensões(12). Já dizia o velho Plutarco: “A inteligência dos alunos não é um vaso que se tem de encher; é uma fogueira que é preciso manter acesa”(13), e que combustão melhor oferece a literatura, capaz de descentrar o mundo, e, revolvendo-se as camadas do indivíduo e da sociedade, mostrar que a nossa constituição de seres é transitória e que,  mesmo com dificuldades imensas, é possível dar outra configuração ao mundo...
É assim que podemos considerar a leitura não só como um exercício de prazer. Na verdade, via leitura, podemos atingir o conhecimento, mas o caminho da cultura nunca é fácil. É sempre áspero e espinhoso; basta olhar na história da cultura, o trajeto seguido por aqueles que se tornaram pontos de referência para nós. Não podemos nos iludir com a idéia hedonista e exclusivista do prazer, simplesmente porque ele esbarra no princípio da realidade. Conseguir um padrão de disciplina, responsável pelo crescimento, é tarefa árdua, na qual foram confrangidas muitas forças, não apenas a vontade pessoal, sem que, repetimos, uma boa dose de prazer não possa atuar em todo este processo.Saindo da tepidez dos aconchegos alienantes, somos obirgados a encarar “as angústias e as discórdias”, bem como as contradições “que existem dentro” e fora de nós, em conseqüência do que, estamnos frente a frente com a “miséria e a vergonha dos homens”(14), envolvidos com os conflitos de interesses que nem sempre deixam a face do mundo na ordenação linear que gostaríamos de ver para melhor compreendê-la. E destrinchar Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lúcia Cardoso, Nélida Piñon, nem sempre é um exercício ameno. Precisamos de um burilamento detalhado, precisamos afinar nosso instrumental de análise para dar conta das profundas e amplas complexidades geradas por estes autores.  Para nenhum astro de nossas letras, de nossa cultura, o caminho foi recamado de leite e mel. Nietzsche já advertira a respeito do “martírio que a história das ciências... as lutas, as derrotas, os retornos à luta” de todos aqueles que se tornaram sábios, justamente porque assumiram com absorção total estes desafios(15). E é desta maneira que a decantada natureza humana vai se modificando na sua raiz mais profunda, na medida em que interfere na face do mundo.
Para que tais metas sejam possíveis e produzam a riqueza esperada, não devemos ter medo, nem preconceito  com relação a nenhum tipo de leitura. Temos convicção de que, para se chegar à leitura como uma prática realmente eficaz, todos os caminhos são válidos. O risco está em ficarmos estacionados no trivial.O consumo de best-sellers pode ser via de acesso ou parada para um descanso. Ficar neste estágio de leitura é condenar a mente à inanição. Devemos ter em mira que nosso caminho se volta em direção das grandes  obras literárias do gênero humano. Não aceitamos que estas obras sejam simplesmente rotuladas como burguesas, representantes de uma classe social, portanto sem interesse para a leitura mais ampliada. Tais obras são uma das grandezas do homem, transcendem por isso as questões de seu tempo, do seu autor, da ideologia de classe a que pertencem. Dizer que tais obras são dispensáveis é defender o elitismo: somente alguns podem desfrutar delas. É inegável que nas obras-primas repousa um patrimônio da humanidade e entrar em contato com elas é enriquecer osso espírito, devassar novos estágios para o mundo. Valem como grandes experiências de vida mediadas pela criação, logo, produtos do pensamento e de leituras de época, cuja prospecção só pode apontar-nos direções inovadoras. E, no diálogo que mantiveram com seu tempo, entrincheiraram antecipações que nos são afetas hoje. Portanto, não podem ficar restritas a um pequeno e seleto grupo de admiradores que, ao beber delas, cresce e avança em sua estatura intelectual e isto nem sempre ocorre em favor das maiorias. Nosso compromisso de professores precisa então ser o de formar as pessoas para que um número sempre maior chegue ao perímetro dessas obras e ali realize a leitura sempre como “alguma coisa espantosa”, já que passaríamos “a vida a decifrar, de algum modo, o mundo através dos livros”(16). Sob tal aspecto, abraçamos aleitura nos molde de Montaigne: imaginação, fantasia e criação na construção de signficados que vão muito além da página lida(17).
Com a leitura contínua, sempre mais aprimorada, certamente abrandaremos a sensação de estarmos exilados no mundo, deixaremos de ver este mesmo mundo como algo impenetrável ao nosso entendimento(18). Nas grandes obras da literatura, “é como se o autor aprendesse e sentisse melhor” do que nós o que se passa conosco. “A cultura encontra palavras adequadas para exprimir o que” nós gostaríamos de dizer. “Os homens necessitam de um porta-voz” e, tantas vezes, sutilmente, um autor consegue expressar, preto-no-branco, as circunvoluções vagas de nossas reações, “pois nossos sentimentos e nossas experiências são com tanta freqüência indecisos, em contradição uns com os outros”(19) e é esta pinça verbo-filosófico-ideológica que um autor consegue nos oferecer, com o que tiramos do burburinho babélico de nossas vidas, um flash esclarecedor a nos dar mais ânimo e decisão para o próximo passo, divisando um sentido no esfarrapado tecido do cotidiano cheio de farpas, saliências falsas, reentrâncias mal camufladas. E outra ordem de consideração se impõe: a leitura, entre nós, é vista como sinal de status, de elevação cultural e social, porém, em paralelo, ela é capaz de provocar uma rejeição quase absoluta(20). E é preciso que sejamos realistas: antes de uma reestruturação econômica, em que a riqueza não seja mais concentrada nas mãos de poucos, e de transformações profundas no ensino(que, por sua vez, podem ser conseguidas quanto mais leitura e esclarecimento obtivermos do país), jamais atingiremos um nível satisfatório de leitores. Sem esquecer outra face do problema: na crescente vulgarização da vida atual, o livro permanece como uma ilha de resistência cultural. Por este viés, talvez seja um contra-senso querer transformá-lo em produto presente em larga escala na vida de todos. Com certeza, muitos dos nossos alunos, quando lerem, estarão ocupados com a leitura degustativa, digamos, de mercado, puro divertimento no patamar de qualquer consumo. Mesmo assim, não devemos menosprezar este exercício, porque da massa de leitores de Agatha Christie, Sidney Sheldon, Paulo Coelho, “é que surge a elite dos leitores” de autores refinados e “nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento”(21). E a experiência de um José Paulo Paes talvez esteja esclarecendo algo incômodo, todavia do qual não podemos escapar: a leitura de autores refinados não será realmente uma atividade de poucos, mesmo que isto possa contradizer toda a posição mantida até aqui? É útil enfrentarmos estes enquadramentos, para que não nos desgastemos à toa, quixotescamente gesticulando contra fantasmas inapreensíveis. Certamente, nem todos os nossos alunos tornar-se-ão exímios leitores, até porque a maioria de nossos professores também não é. Neste círculo um tanto vicioso, não optemos pelo desespero e, sim, pelo alargamento dos espaços possíveis, sem falsas e vãs esperanças que talvez acobertem nossa culpa por estarmos nas mais das vezes de braços cruzados.
Após essas considerações, alguém pode perguntar-se: que sentido tem a leitura num país de famintos e analfabetos como o Brasil? Precisamos lembrar: a grande cultura guarda um compromisso com eles. “Quando a fome é aguda, gera violência. Quando é crônica, gera passivos“(22). Em razão disto, podemos encarar a leitura não como panacéia salvadora e sim como prática fundamental para que possamos adotar um método que nos permita uma visão mais produtiva do mundo e nos auxillie na ilumicação e na reordenação deste mesmo mundo. A ficção tem condições de tornar a vida suportável (Lessing) e não entendemos isso como anestesia, mas como compromisso. E a cultura de alta estirpe será sempre “o esforço para não admitir como fatal e inelutável, e menos ainda como benéfico, o esmagamento dos mais fracos“(23). Com todos estes pontos em mente, envolvidos em redemoinho de perguntas, talvez fiquemos imersos numa espécie de ansiedade compulsiva. Lembremos: é impossível ler toda a produção signficativa que ao longo dos séculos vem criando inesgotável labirinto de belezas e sustos e perplexidades. Amadurecer é aceitar o limite, a finitude.
Ser professor é ser capaz de abrir os olhos do outro para coisa tão simples. No fundo, tudo é muito simples: não estamos sacralizando a obra literária. Apenas a amamos e queremos fazer outros amá-la, porque este amor cerca o cotidiano de sentido. Na voz de Snyders:“Trata-se simplesmente de retomar nosso bem, o bem dos homens, a grandeza do que é terreno“(24).

  1. SOUSA, Herbert de. Combate à miséria é prioridade, diz Betinho. Folha de São Paulo. 5 set. 1993. Entrevista.
  2. PERROTI,  Edmirt. Confinamento cultural: Infância e leitura. São Paulo: Summus Editorial, 1990
  3. SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. São Paulo: Paz e Terra, 1993. P. 39.
  4. SNYDERS, G. op.cit., p. 62
  5. BETTELHEIM, Bruno. Os livros essenciais de nossa vida. Leia. P. 28, maio 1990.
  6. SONTAG, Susan. Entrevista a Marília Gabirela. Cara-a-Cara. Rede Bandeirantes, 1.8.1993.
  7. Apud AMÂNCIO,  Moacir. Debilóides ou vítimas? Jornal da Tarde, 24 jul. 1993. Caderno de Sábado, p. 2
  8. Referimo-nos ao trabalhoda professora Sônia Konell, em União da Vitória, PR, cuja experiência é a base da reflexão de sua dissertação de mestrado, defendida em agosto de 1994, na Universidade Federal do Paraná e ao trabalhoda professora Vânia Marineck, na Escola Vila, SP.
  9. Cf. BAKTHIN, Mikhail Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Editora Hucitec, 1979.
  10. SNYDERS, G. op. Cit. P. 30.
  11. SNYDERS, G. op. Cit. P. 162.
  12. Ibid. p. 29.
  13. Apud SNYDERS,g. OP. CIT. P. 111.
  14. ARRIGUCCI Jr, David. Leitura: entre o fascínio e o pensamento. Idéias. São Paulo, Nº. 13, p. 20, 1992.
  15. Apud SNYDERS, G. op. Cit. P. 107.
  16.  ARRIGUCCI Jr. , D. op. Cit. P. 19
  17. BARBOSA, João Alexandre. Variações sobre a leitura. Jornal da Tarde, 10 de ago. 1991. Caderno de Sábado, p. 2.
  18. SNYDERS, G. op. Cit. P. 173.
  19.  Ibid. p. 174
  20.  FRANCESCHI, Antônio Fernando de. Um certo  olhar. Leia. São Paulo, p. 14, mar. 1988
  21. PAES, José Paulo. Por uma leitura brasileira de entretenimento ou: o mordomo não é o único culpado. In:__ A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo, Cia. das Letras, 1990, p. 37.
  22. CRAVIOTTO,  Joaquim. Fome Cerebral. IstoÉ/Senhor, 15 de maio de 1991. Entrevista.
  23. SNYDERS, G. Op. Cit. P. 167.
  24. Ibid., p. 167.