Ivo Pitz
Untitled Document Projeto MATAR permitirá à mãe decretar pena de morte a seu filho até minutos antes do nascimento dele (I)
Jurista comenta Projeto de Lei do aborto que tramita na Câmara dos Deputados do Brasil

SÃO PAULO, quinta-feira, 23 de março de 2006 (ZENIT.org).- «É preciso reagir com vigor contra essa avalanche da morte». Com palavras firmes, o jurista Cícero Harada --Advogado, Procurador do Estado de São Paulo, Conselheiro da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia-OAB/SP--, em entrevista a Zenit e Cooperatores Veritatis, refuta os argumentos dos que promovem o aborto e explica verdadeiramente do que se trata o Projeto de Lei 1.135/91, que descriminaliza o aborto no Brasil.

A segunda parte desta entrevista será publicada em Zenit esta sexta-feira.

Atualmente tramitam no Congresso brasileiro vários projetos de lei tratando do aborto, alguns para aumentar a pena relativa ao crime e outros para descriminalizar. O texto que gera mais polêmica é o substitutivo ao Projeto de Lei 1.135/91, da deputada Jandira Feghali, que está para ser votado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. O que propõe esse substitutivo?

Dr. Cícero Harada: “Projeto Matar” é como denomino o substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.135/91 de autoria da deputada federal Jandira Feghali do Partido Comunista do Brasil, pelo Estado do Rio de Janeiro. Indicar o substitutivo do projeto só pelo número ou pelo nome de sua autora, soa-me de neutralidade inaceitável, ante a gravidade de seu conteúdo. Norma Braga denunciou que, hoje, usam-se metáforas e eufemismos para travestir de “bem” algo que é ruim. É o caso do aborto, enobrecido por seus defensores com expressões como: “direitos reprodutivos da mulher” e “interrupção voluntária da gravidez”.

O “Projeto Matar” pretende revogar os artigos 124, 126, 127 e 128 do Código Penal, isto é, descriminalizar totalmente o aborto. Transformado em lei, a mãe poderá decretar a pena de morte a seu filho até minutos antes de seu nascimento, sem que isso constitua ato delituoso. É por isso, repito, que esse projeto merece um nome e um carimbo que o identifique em toda sua hediondez e crueza: o “Projeto Matar”.

É interessante que os defensores do “Projeto Matar”, diante da expressão “legalização do aborto”, respondam: “não somos a favor da legalização do aborto, mas da sua descriminalização”. Mero jogo de palavras e formas lingüísticas para dourar a pílula e anestesiar as consciências diante desse ato dramático e desumano. Aprovado o “Projeto Matar”, o ato de abortar, de matar uma criança não nascida, deixa de ter tipificação criminal, isto é, passa a ser tão legal como o ato de assistir a um filme ou de tomar um copo d’água.

Em que estágio está atualmente a discussão do aborto no Congresso brasileiro?

Dr. Cícero Harada: O “Projeto Matar”, substitutivo ao projeto de lei nº 1135/91, que pretende descriminalizar o aborto no Brasil, possibilitando que se mate uma criança até momentos antes do nascimento, tramita na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, em Brasília. Em razão do seu mérito, não creio que ele, depois, siga para outra comissão permanente que não a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, onde obterá parecer e, não sendo arquivado, seguirá para votação em plenário. Claro que, após, caberá, ainda, a revisão do Senado, antes da sanção ou veto do Presidente da República, porque o projeto teve origem na Câmara dos Deputados.

No tocante ao Congresso Nacional, Câmara dos Deputados e Senado, lembro que este é um ano eleitoral. Em cada Estado serão eleitos deputados federais e um senador. É imprescindível que o eleitor saiba, previamente, se o seu candidato é ou não a favor do direito à vida ou se, pelo contrário, vê com simpatia o aborto. A eleição dos governadores e do Presidente da República é, da mesma forma, muito importante, porque eles influenciam grandes bancadas, sendo a posição deles determinante em muitas votações. Além disso, quanto ao candidato à presidência, essa relevância mais se evidencia, porque a ele caberá sancionar ou vetar o projeto de lei.

Em resumo, o malfadado “Projeto Matar” deve ser colocado em pauta, isto é, será discutido e votado na Comissão de Seguridade Social e Família, uma das comissões permanentes da Câmara dos Deputados.

Tenho ouvido dizer que, em face do ano eleitoral e da natureza polêmica da matéria, a questão seria deixada para a próxima legislatura. Isso evitaria riscos à reeleição dos deputados, senadores e até do presidente. A assertiva não deixa de ter sua lógica, não só pelo fato de a maioria dos eleitores serem contra o aborto, mas também porque, a partir do segundo semestre, a campanha eleitoral ganha as ruas, começando então o chamado recesso branco. No entanto, não podemos baixar a guarda. Inúmeras leis já foram aprovadas, sub-repticiamente, a toque de caixa, utilizando-se de todas as manobras regimentais e acordos de lideranças, nos estertores do ano legislativo, apanhando de surpresa a sociedade boquiaberta. Todo cuidado é pouco.

O direito à vida é um direito natural. Esse direito é garantido pela Constituição brasileira. O Brasil também é signatário de pactos internacionais como o de São José da Costa Rica, o qual garante o direito à vida desde o momento da concepção. O projeto de lei do aborto é inconstitucional?

Dr. Cícero Harada: Antes de tudo, o direito à vida não é um dogma religioso, tema de “fundamentalistas”, como costumam dizer os abortistas. É um direito natural. Decorre da própria natureza humana. O direito à vida é ínsito ao ser humano. O Estado de direito supõe necessariamente o direito natural. A lei natural há de ser o fundamento da ordem jurídica.

Cícero (106 a 43 a.C.), o grande orador romano, em um de seus mais belos textos, assim a define: “é a reta razão em harmonia com a natureza, difundida em todos os seres, imutável e sempiterna, que, ordenando, nos chama a cumprir o nosso dever, e, proibindo, nos aparta da injustiça. E, não obstante, nem manda ou proíbe em vão aos bons, nem ordenando ou proibindo opera sobre os maus. Não é justo alterar esta lei, nem é lícito derrogá-la em parte, nem ab-rogá-la em seu todo. Não podemos ser dispensados de sua obediência, nem pelo Senado, nem pelo povo. Não necessitamos de um Sexto Aelio que no-la explique ou no-la interprete. E não haverá uma lei em Roma e outra em Atenas, nem uma hoje e outra amanhã, ao invés, todos os povos em todos os tempos serão regidos por uma só lei sempiterna e imutável. E haverá um só Deus, senhor e governante, autor, árbitro e sancionador desta lei. Quem não obedece esta lei foge de si mesmo e nega a natureza humana, e, por isso mesmo, sofrerá as maiores penas ainda que tenha escapado das outras que consideramos suplícios.” (De republica, III, 22).

O direito à vida é lei natural, porque encontra fundamento na natureza humana. Adequa-se, por isso, à definição de Cícero. É direito anterior ao Estado. A este incumbe reconhecê-lo, declará-lo. O Estado não cria a vida, não cria o direito à vida, não o constitui. Direitos fundamentais não são constituídos. São declarados, porque só se declara algo que pré-existe, que existe antes e é reconhecido pela ordem jurídica. Notem como Cícero já afirmava, com razão, algo que se aplica perfeitamente ao direito à vida: “não é justo alterar esta lei, nem é lícito derrogá-la em parte, nem ab-rogá-la em seu todo. Não podemos ser dispensados de sua obediência, nem pelo Senado, nem pelo povo.” Tenho repetido à exaustão que a maioria não pode prescrever quando, como e em que circunstâncias uma minoria pode morrer.

No século passado, por exemplo, o nacional-socialismo, utilizando um normativismo puro, formalista, apartado do direito natural, contrariou o direito à vida, atingindo um paroxismo tal que chocou a humanidade. É nesse sentido que o Papa João Paulo II, defendendo vigorosamente a vida, ensinou que o direito à vida é um limite da democracia.

O direito positivo deve ter por fundamento o direito natural. Nessa ordem de coisas, o artigo 5º, caput, da Constituição Federal, reconhece a “inviolabilidade do direito à vida”. A Lei maior não distingue a fase da vida que é protegida, sendo evidente, portanto, que a vida em todas as suas fases é resguardada pelo estatuto máximo. Não há como permitir que a lei autorize a morte do ser humano inocente, ainda mais nessa fase de grande fragilidade. A inconstitucionalidade é patente. Além disso, trata-se de direito fundamental resguardado pela imutabilidade que lhe outorga a cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, inciso IV), isto é, nem mesmo por emenda de alteração da Constituição é possível violar esse princípio inscrito no texto da nossa Lei maior. Muito menos, por lei ordinária, conjunto de normas infraconstitucionais, poderá o Congresso arranhar o princípio constitucional da intangibilidade do direito à vida. Significa isso que sequer a Câmara dos Deputados poderia deflagrar um processo legislativo como esse do aborto. Liminarmente, deveria rejeitá-lo, arquivando-o e impedindo a tramitação dele ante a flagrante ofensa ao inviolável direito à vida em qualquer de suas etapas, consagrado pela Constituição da República.

O aborto é um direito da mulher?

Dr. Cícero Harada: Não, o aborto não é um direito da mulher ou de quem quer que seja. É um crime contra a vida. Constitui atentado ao direito natural à vida e ofende a ordem jurídica positiva do país.

Os defensores do aborto pretendem que ele faça parte dos direitos humanos. Para tanto, constroem os chamados “direitos reprodutivos da mulher”, segundo os quais a mulher é senhora absoluta de seu corpo e do nascituro. Nessa linha, o ser humano em gestação fica sob jugo total da mãe que, em nome da liberdade e de seus direitos reprodutivos, tem autonomia de decidir pelo aborto no caso de gestação indesejada. A liberdade da mãe para matar o filho é o que querem. Liberdade para matar.

Para que esse ato não provoque a natural repulsa, o discurso é todo elaborado com eufemismos, metáforas, construções estéticas e poéticas. O “Projeto Matar”, por exemplo, é delicadamente denominado de projeto de “interrupção voluntária da gravidez”. Com isso, o interlocutor fica anestesiado pelo eufemismo e esquece da repulsiva e brutal realidade: a condenação, pela própria mãe, sem direito à defesa, do inocente filho em seu ventre à pena de morte.

Desde 1827, com Karl Ernest von Baer, pai da embriologia moderna, ficou assentado que a vida tem início com a concepção. No entanto, os defensores do aborto querem inserir dúvidas quanto ao início da vida, afirmando que o zigoto, a mórula, a blástula, o concepto, o embrião, o feto, enfim, o não nascido são células descartáveis. Com isso, pretendem dar à mulher tranqüilidade de consciência, para que possa abortar. Querem que a matéria fique no âmbito de sua decisão exclusiva, de sua liberdade. Mas ainda que se conceda, por absurdo, apenas para argumentar, que haja dúvida quanto ao início da vida, certo é que, até ao réu acusado das mais terríveis atrocidades, aplica-se o princípio, segundo o qual a dúvida o beneficia (in dubio pro reo). Ora, com muito mais razão ele se aplica ao ser humano inocente e em fase de grande fragilidade, ou seja, na dúvida, há de ser preservada a vida (in dubio pro vita) e não, como propõem os partidários do aborto, na dúvida a decretação da morte.

De outro lado, a morte de um ser humano, em qualquer fase de sua vida, não pode ficar sob o arbítrio de alguém. O reconhecimento do direito à vida e de sua intangibilidade impõem que o Estado estabeleça sanção para aquele que, estendendo a liberdade para além do respeito à integridade física de outro ser humano, provoca-lhe a morte.

Diante do aborto, Madre Teresa de Calcutá foi de uma precisão avassaladora, quando disse: eu sinto que o grande destruidor da paz hoje é o aborto, porque é uma guerra contra a criança, uma matança direta de crianças inocentes, assassinadas pela própria mãe. E se nós aceitamos que uma mãe pode matar até mesmo seu próprio filho, como é que nós podemos dizer às outras pessoas para não se matarem?

Segundo a especialista Theresa Burke, entrevistada por Zenit esta semana (cf. Zenit, 12, 13 de março), o aborto é responsável por uma série de problemas profundos: 160% de aumento nos índices de suicídio nos Estados Unidos, segundo os Arquivos de «Women’s Mental Health», em 2001; um aumento de 225% nos índices de suicídio na Grã-Bretanha, segundo o British Medical Journal, em 1997; um aumento de 546% nos índices de suicídio na Finlândia, segundo os Acta Obstétrica et Ginecologia Scandinavia, em 1997.

Segundo ela, outro estudo revela que inclusive quatro anos depois do aborto o índice de admissões psiquiátricas permanecia 67% mais alto que o das mulheres que não haviam abortado.

Esses argumentos são “esquecidos” na hora da discussão do aborto? Como o senhor analisa um projeto de lei que irá causar tamanhos danos às mulheres? Não é dever do Estado proteger as mulheres?


Dr. Cícero Harada: A gestação é algo natural ao corpo da mulher. Ela está preparada para gerar um filho. Assim, perpetua-se a humanidade. O aborto, interrupção da gravidez, provocando a morte do ser humano não nascido é uma violência brutal. Não só ao próprio filho que é morto, mas por agredir física e psicologicamente a mulher.

Lembro-me de um provérbio francês: Chassez le naturel, il revient au galop. A pretensão iluminista imagina, ensimesmada em seus dogmas de fé, que tudo pode. Contraria a natureza, a ordem natural das coisas e o que vemos? A natureza retornando, respondendo com toda sua força. No tocante ao aborto, o mesmo ocorre, só que as grandes vítimas são, em primeiro lugar, o nascituro, depois, a mulher, que, em nome de uma ilusória “liberdade”, pensa num primeiro momento que resolveu o seu “problema”, mas no decorrer do tempo descobre seqüelas em seu corpo e vai soçobrando num oceano de conflitos psicológicos quase insolúveis e, não poucas vezes, irremediavelmente trágicos.

Também neste caso, calha com perfeição a advertência de Cícero: “quem não obedece esta lei (a lei natural) foge de si mesmo e nega a natureza humana, e, por isso mesmo, sofrerá as maiores penas ainda que tenha escapado das outras que consideramos suplícios”.

É impossível que esses óbices naturais não sejam de conhecimento dos partidários do aborto. São, porém, estrategicamente olvidados para que o aborto possa se transformar numa atraente bandeira de “libertação” da mulher. A mulher, pobre mulher, é usada, a fim de que os interesses dos países ricos, o controle populacional e a limpeza eugênica dos países mais pobres, possam ser implementados.

A proteção da mulher não vai na direção da descriminalização do aborto, mas na da assistência à mulher antes e depois do parto. Políticas equivocadas, para não dizer perversas, são essas que, ao invés de tornar eficientes o atendimento à saúde, o acesso à moradia, a freqüência às escolas de qualidade, a geração de empregos, verdadeiramente protegendo a mulher e a criança, resolvem trilhar o caminho hediondo da eliminação do ser humano ainda no ventre materno. Que tipo de sociedade queremos? A do extermínio dos fracos? Hoje dos nascituros, amanhã dos doentes, dos deficientes físicos, dos idosos? Depois, quiçá, de uma raça, de uma classe social? O direito positivo, sem lastro no direito natural, será instrumento arbitrário do poder, seja da maioria, seja da minoria ou mesmo de um Fhürer. Esse é um caminho perigosíssimo e, muitas vezes, sem volta.
ZP06032315
Leia a segunda parte da entrevista. AQUI