Ivo Pitz
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«Projeto Matar» permitirá à mãe decretar pena de morte a seu filho até minutos antes do nascimento dele (II)
Jurista comenta Projeto de Lei do aborto que tramita na Câmara dos Deputados do Brasil

SÃO PAULO, sexta-feira, 24 de março de 2006 (ZENIT.org).- «A decretação da pena de morte sem culpa do ser humano em um momento de maior fragilidade, sem que se lhe dê o direito à defesa, é um dos maiores absurdos que esta “civilização” pode perpetrar», diz jurista.
Nesta segunda parte da entrevista concedida a Zenit e Cooperatores Veritatis (cooperatoresveritatis@yahoo.com.br), Cícero Harada --Advogado, Procurador do Estado de São Paulo, Conselheiro da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia-OAB/SP--, prossegue sua fala no contexto da discussão no Brasil do Projeto de Lei 1.135/91, que descriminaliza o aborto no país.

A primeira parte desta entrevista foi publicada em ZENIT, 23 de março de 2006. Veja-a AQUI

O senhor escreveu um artigo, publicado em Zenit no dia 2 de dezembro de 2005, intitulado “O Projeto Matar e o Projeto Tamar: O Aborto”. O artigo gerou muita polêmica e forte reação dos grupos favoráveis ao aborto. Gostaríamos que o senhor comentasse o assunto. No Brasil, os seres humanos concebidos poderão ser colocados, pela lei, em situação inferior à das tartarugas?

Dr. Cícero Harada: “O Projeto Matar e o Projeto Tamar: o Aborto” eu o escrevi, para mostrar como é contraditório esse mundo em que vivemos. O Projeto Tamar (tartarugas marinhas), desde 1980, protege a vida das tartarugas marinhas. A cada temporada são protegidos cerca de 14.000 ninhos e 650.000 filhotes. Se alguém destruir um único ovo de tartaruga, comete crime contra a fauna, espécie de crime contra o meio ambiente (Lei nº 9.605/98).

Na Câmara dos deputados, tramita o substitutivo ao Projeto nº 1.135/95, que pretende legalizar o aborto do nascituro até instantes antes do nascimento. Isso é assim, em face da pretendida revogação dos artigos 124, 126, 127 e 128 do Código Penal, ou seja, estamos diante de um verdadeiro “Projeto Matar”. A decretação da pena de morte sem culpa do ser humano em um momento de maior fragilidade, sem que se lhe dê o direito à defesa, é um dos maiores absurdos que esta “civilização” pode perpetrar.

Em inúmeros debates, ouvia sempre dos defensores do aborto: “não sabemos quando começa a vida, por isso, a mulher pode escolher se aborta ou não”. Asseveravam também: “o embrião e o feto são punhados de células descartáveis, portanto o aborto pode ser feito”. Resolvi escrever esse artigo e distribuí-lo pela internet aos meus amigos que foram repassando a outras pessoas. No primeiro dia, vários sites já manifestavam interesse de publicá-lo. Zenit foi dos primeiros a publicar o artigo.

Nele, quis mostrar de modo simples, quase intuitivo, a falsidade dessas premissas, tanto a da dúvida quanto ao início da vida, como a de que o embrião e o feto são amontoados de células descartáveis. Ninguém duvida que de ovos de tartarugas nasçam tartaruguinhas. Ninguém contesta que neles está o início da vida. Ninguém afirma que ovos de tartarugas são punhados de células descartáveis. O argumento é quase intuitivo e qualquer pessoa do povo, qualquer criança o entende claramente. Quem destruir um único ovo comete crime contra a fauna.

Agora, quanto ao substitutivo ao Projeto nº 1.135/91, que pretende abrir as portas ao assassínio de crianças não nascidas, “o Projeto Matar”, os abortistas afirmam que o embrião e o feto do ser humano são agregados de células descartáveis como copos de plástico. Portanto, podem ser destruídos. Mais: põem em dúvida o início da vida. Isso é uma hipocrisia. São dois pesos e duas medidas: a tartaruga não nascida, protegida pelo Projeto Tamar, terá, se aprovado “o Projeto Matar”, mais proteção do que o ser humano não nascido.

A reação a este artigo foi muito forte. Uma líder feminista escreveu réplica, atacando a Igreja, Suas Santidades os Papas João Paulo II e Bento XVI, porém, sem entrar no mérito do artigo, nem contestar, fundamentadamente e com coerência, os argumentos por mim lançados. Atribuiu-me palavras para sustentar algo que não fica em pé por conta própria.

Em face disso, escrevi a tréplica intitulada: “Nós não somos tartarugas”.

O debate foi transcrito em inúmeros sites, incluindo o da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo. Não quero citá-los para não cometer injustiça, se esquecer de algum deles. Menciono apenas um que, além de acompanhar o debate e as repercussões, indica os endereços de inúmeros outros sítios que contém a matéria, e, a partir daí, o leitor, se quiser, poderá consultá-los: http://tamarmatar.wordpress.com.

Zenit noticiou no fim do ano passado que parlamentares europeus visitaram o Brasil no início de dezembro para promover o aborto. Tratou-se de um pacote oferecido a um selecionado grupo pelo Inter European Parliamentary Forum on Population and Development (IEPFPD) e pelas Catholics For a Free Choice (CFFC, Católicas pelo Direito de Decidir) –(Cf. Zenit, 20 de novembro de 2005)– .

Segundo Riccardo Cascioli, diretor do CESPAS (Centro Europeo di Studi su Popolazione, Ambiente e Sviluppo), «esta iniciativa insere-se em uma vasta campanha internacional dirigida a criar pressões sobre países nos quais o aborto é proibido ou limitado. A América Latina é o objetivo principal deste ataque, enquanto é praticamente o único continente onde o aborto continua largamente proibido”.» Comente, por favor.

Dr. Cícero Harada: A análise da legalização do aborto tem sido feita sob inúmeros enfoques. Essa afirmação de Ricardo Cascioli é, a um tempo, correta e preocupante. As pressões internacionais para a aprovação do aborto mostram claramente que não se pode esquecer de examinar a questão sob o prisma político.

Hoje, seria de extrema ingenuidade acreditar que a soberania nacional é aquele poder incontrastável no âmbito de um território e, por isso, respeitada. As multinacionais do aborto estão aí, a desmentir essa assertiva, regando com milhões e milhões de dólares e euros entidades públicas e privadas, para que os países pobres do sul se submetam ao império da sexualidade hedonista, das esterilizações em massa, da contracepção, da legalização do aborto.

A onda abortista não é movimento espontâneo, como pode parecer à primeira vista, mas faz parte de uma enorme orquestração internacional. E não é de hoje que tudo isso acontece. Basta que lembremos do famigerado “Relatório Kissinger”(1974). Nesse documento do Conselho de Segurança americano, ficou consignado que “a assistência para o controle populacional deve ser empregada principalmente nos países em desenvolvimento de maior e mais rápido crescimento onde os EUA têm interesses políticos e estratégicos especiais.” Entre eles figura o Brasil. Sobre o aborto, assevera que sem ele não se alcança a redução do crescimento da população, essencial para a segurança e os interesses norte-americanos.

A entidade internacional IPPF (International Panning Parenthood Federetion, Federação Internacional de Planejamento Familiar), talvez a maior entidade privada internacional de controle da população, tem uma filial no Brasil, a BEMFAM, com orçamento de dois milhões e meio de dólares para custear seus objetivos, entre os quais a legalização do aborto. É claro que a pressão dá-se de todas as formas: desde a destinação de recursos, passando pela criação de entidades feministas, o lobby na ONU, nas conferências internacionais, no Congresso Nacional, para que sejam aprovados os meios de controle populacional. Mas há muitas outras entidades de peso, financiando largamente essa política, cito apenas duas delas: a Fundação Ford e a Fundação MacArthur.

Evidente que para um projeto dessa dimensão e com essas finalidades, não há interesse de destinar recursos para a área social, como hospitais, creches, escolas, já que isso estimula o crescimento demográfico, contrariando o escopo dos países ricos. Premidas pelos baixos salários e pela ausência de atendimento das necessidades na área social, as pessoas são induzidas a lançarem-se nos braços da política perversa em que a morte é “preferível” à vida. Impõe-se, assim, goela a baixo a “cultura da morte”.

A questão formulada faz referência às Catholics For a Free Choice (CFFC), ou seja, Católicas pelo Direito de Decidir (CDD). Todos sabemos que a Igreja Católica tem sido fidelíssima guardiã dos direitos naturais, proclamando alto e bom som a intangibilidade do direito à vida. No entanto, eis que uma entidade internacional de mulheres, que se dizem católicas, prega desbragadamente o aborto. Ora, o Código Canônico, no Cânon 1398, estabelece que “quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão ‘latae sententiae”, isto é, “ipso facto commissi delicti” (pelo simples fato de cometer o delito, ou seja, automaticamente). Pergunto: que católicas são essas que pregam e defendem, escandalosamente, a prática do aborto, ato que acarreta a excomunhão “ipso facto”? Essa militância declarada a favor do aborto pode ser denominada apenas de acatólica? Não seria mais uma típica atitude anticatólica? A denominação católica altera a natureza anticatólica da militância pró-aborto da entidade? Será que o simples nome pode alterar a natureza das coisas? Se denomino um lobo de ovelha, nem por isso ele deixará de ser lobo, mesmo que em pele de ovelha.

Outro argumento sempre lembrado é o da explosão demográfica. Trata-se de um dos embustes para justificar a intervenção em diversos países, ferindo as soberanias nacionais e preparando a ditadura totalitária do Estado Mundial.

Exemplo recente de intervenção com esteio numa impostura é o da Comissão de Direitos Humanos da ONU que exigiu do Paraguai a legalização do aborto, trazendo como respaldo os artigos 6 e 24 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Ora, bem examinada a fundamentação, vejo que o único dispositivo pertinente resguarda o direito à vida e não o aborto. É que o artigo 6.5 do referido pacto estabelece que uma pena de morte não poderá ser imposta em casos de crimes por pessoas menores de 18 anos, nem aplicada a mulheres em caso de gravidez. Por que a pena de morte não pode ser aplicada a mulheres nesse caso? A resposta é simples: cominada a pena à mulher grávida estar-se-á condenando à morte também seu filho, que não cometeu nenhum ato delituoso. Fizesse o nascituro parte do corpo da mulher, fosse ele um conjunto de células descartáveis, como querem os que propugnam pelo aborto, não haveria essa vedação. Ou seja, a exigência da Comissão de Direitos Humanos, não só interfere nos negócios internos do Paraguai, afrontando a soberania nacional daquele país, mas também o faz contra o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que, sem o menor pejo, assegura fundamentar sua intervenção.

No mais, o fato de os países latino-americanos ainda respeitarem o direito natural, consagrando em suas leis positivas o direito à vida, faz com que as entidades internacionais concentrem neles suas baterias para impor-lhes a ditadura da “cultura da morte”.

Legalizada a morte dos seres humanos não nascidos, derruba-se o princípio, amanhã, alguém, com razão, indagará: “se posso matar o ser humano até momentos antes do parto, por que não poderei um dia depois? Se posso um dia depois, por que não no dia seguinte?” De dia em dia, estarão abertas as portas para que novas convenções estabeleçam de quem será a vez. É evidente que o poder elegerá sempre uma minoria mais fraca, deficientes físicos, grupo racial, etário, religioso. Isso, é óbvio, invariavelmente, em nome da “liberdade”, da “qualidade de vida” individual ou social ou de algum outro reluzente pseudovalor. Assim, o poder absoluto desse leviatã terá em suas mãos a vida e a morte de cada cidadão.

Há no mal uma dinâmica própria que não pode ser esquecida: abyssus abyssum invocat, o abismo chama outro abismo (Salmos, 41,8). É preciso reagir com vigor contra essa avalanche da morte, antes que seja tarde demais. É imperioso evitar os abismos, pois, neles, chegaremos às profundezas devastadoras, à expiação desnecessária e à carnificina dos holocaustos.