O texto a seguir pertence ao livro de Marilena Chauí, publicado pela Editora Ática, em 2000. Seu título é" Convite à Filosofia"
Disponível também em: http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_42.htm
Unidade 8
O mundo da prática
Capítulo 7
A vida política
Paradoxos da política
Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua, fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -, enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?
Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -, ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?
No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido.
De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”, “política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas, etc.
Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes, etc.
Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos?
Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e organização.
Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três significados principais inter-relacionados:
1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos.
Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos). Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado, mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.
A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado;
2. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;
3. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócio-econômica e política.
Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações, criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance, fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais.
Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam percebidas como absurdas.
Tomemos um exemplo recente da história da política do País. Em 1993, durante o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente da república, Fernando Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos políticos, ouvimos, em toda a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade preservada se o julgamento do pedido não fosse um “julgamento político”.
Onde está o paradoxo? No fato de que a república brasileira é constituída por três poderes políticos – executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo Tribunal Federal, sendo um poder político da República (um poder do Estado), não pode ficar fora da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar que um poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?
Mais paradoxal, ainda, foi o modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram seu próprio trabalho, dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e nisso reside o paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então, separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação política?
Na verdade, quando se insistia em que o julgamento “não fosse político” e se elogiava o julgamento por “ter sido apenas legal”, o que estava sendo pressuposto por todos (sociedade e juízes) era a identificação costumeira entre política e interesses particulares escusos, contrários aos da maioria, que por isso deve ser protegida pela lei contra a política. O paradoxo está no fato de que uma forma essencial da política – a lei – aparece como proteção contra a própria política.
Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica uma greve, declarando que se trata de “greve política”. É curioso que usemos, sem problema, a expressão “política sindical” e, ao mesmo tempo, a condenemos, criticando uma greve sob a alegação de ser “política”.
Em certos casos, é compreensível o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de trabalhadores de uma fábrica de automóveis que, em nome de melhores salários, entram em greve contra a direção da empresa, compreende-se que a greve seja considerada “simplesmente econômica”. Ao criticá-la como “greve política” está-se, como sempre, querendo dizer que os grevistas, sob a aparência de uma reivindicação salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e ilegítimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um sentido pejorativo à greve.
Há casos, porém, em que a expressão “greve política”, usada como crítica ou acusação, é surpreendente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo. Estão, portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a greve é e só pode ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o que ela é? O motivo é simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa que ela é “política” é fazer uma acusação. A crítica só em aparência está dirigida contra a greve, pois, realmente, está voltada contra a política, imaginada como algo maléfico.
Essa visão generalizada da política como algo perverso, perigoso, distante de nós (passa-se no Estado), praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra “nós”, sob o disfarce de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo secreto e desconhecido, uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta e, através da polícia, uma força repressora usada contra a sociedade. Essa imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes, que consentem a violência, é paradoxal pelo menos por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, porque a política foi inventada pelos humanos como o modo pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformá-los em guerra total, em uso da força e extermínio recíproco. Numa palavra, como o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política seja percebida como distante, maléfica e violenta?
Em segundo lugar, porque a política foi inventada como o modo pelo qual a sociedade, internamente dividida, discute, delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros. Como explicar, então, que seja percebida como algo que não nos concerne, mas nos prejudica, não nos favorece, mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de outros?
Que aconteceu a essa invenção humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo de que gostaríamos de nos livrar?
Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes impunes praticados por políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.
Ao lado desses fatos, não passa um dia sem que saibamos o modo desumano, autoritário, violento com que funcionários públicos, cujo salário é pago por nós (através de impostos), tratam a população que busca os serviços públicos. Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão redigidas, tornando-se incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam interpretadas por especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam corretamente, se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.
O que é curioso, porém, aumentando nossa percepção da política como algo paradoxal, é o fato de que só podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles através da própria política, pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se realiza uma revolução, os motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na forma e no conteúdo do poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero humano contra todas as modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo, violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o término da própria política.
As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas, mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política, pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer política.
O vocabulário da política
O historiador helenista Moses Finley, estudando as sociedades grega e romana, concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos.
Antes de examinarmos o que foi tal invenção, já podemos compreender a origem greco-romana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário usado em política: democracia, aristocracia, oligarquia, tirania, despotismo, anarquia, monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos; república, império, poder, cidade, ditadura, senado, povo, sociedade, pacto, consenso são palavras latinas que designam regimes políticos, agentes políticos, formas de ação política.
A palavra política é grega: ta politika, vinda de polis.
Polis é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos cidadãos (politikos), isto é, pelos homens nascidos no solo da Cidade, livres e iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não deve realizar).
Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis, erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços públicos (abertura de ruas, estradas e portos, construção de templos e fortificações, obras de irrigação, etc.) e das atividades econômicas da Cidade (moeda, impostos e tributos, tratados comerciais, etc.).
Civitas é a tradução latina de polis, portanto, a Cidade como ente público e coletivo. Res publica é a tradução latina para ta politika, significando, portanto, os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de Roma.
Polis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político moderno, chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário público, serviços públicos) e sua administração pelos membros da Cidade.
Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que designamos modernamente por práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no poder, aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação, no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público.
Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que, antes deles, não existiam o poder e a autoridade, mas sim que inventaram o poder e a autoridade políticos propriamente ditos. Para compreendermos o que se pretende dizer com isso, convém examinarmos como era concebido e praticado o poder nas sociedades não greco-romanas.
O poder despótico
Nas realezas existentes antes dos gregos, nos territórios que viriam a formar a Grécia – realezas micênicas e cretenses -, bem como as que existiam nos territórios que viriam a formar Roma – realezas etruscas -, assim como nos grandes impérios orientais – Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China – vigorava o poder despótico ou patriarcal.
Em grego, despotes, e, em latim, pater-familias, o patriarca, é o chefe de família [i] cuja vontade absoluta é a lei: “Aquilo que apraz ao rei tem força de lei”. O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo, aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo, sobre a posse e a distribuição das riquezas, a guerra e a paz, as alianças (em geral sob a forma de casamentos), o proibido e o permitido.
Embora, de fato, a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos rebanhos, sendo chefe o detentor da riqueza, procurava-se garanti-lo contra revoltas e desobediências afirmando-se uma origem sobrenatural e divina para ele. Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles, o detentor do poder também era detentor do privilégio de relacionar-se diretamente com o divino ou com o sagrado, concentrando em suas mãos a autoridade religiosa.
Por sua riqueza, autoridade religiosa e posse de armas, o detentor do poder era também chefe militar, concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a decisão sobre a guerra e a paz. Era comandante.
O chefe era um senhor, enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo quanto nele houvesse (portanto, a riqueza do grupo), a autoridade religiosa e militar, sendo, por isso, rei, sacerdote e capitão.
Com o crescimento demográfico (através das alianças pelos casamentos entre famílias régias), a expansão territorial (através das guerras de conquista), a divisão social do trabalho (através da escravização dos vencidos de guerra e das funções domésticas das mulheres) e os acordos militares e navais entre grupos, a autoridade, embora concentrada nas mãos do rei, passa a ser delegada por ele a seus representantes (em geral, membros de sua família e das famílias aliadas).
Surge, assim, uma repartição das funções de direção ou de poder: a casta sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros, a militar. Senhores das terras, dos escravos, das mulheres, das armas e dos deuses, os grupos detentores da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da comunidade, sob o poder do rei, ao qual prestavam juramento de lealdade e pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos demais.
A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais:
1. como propriedade privada do rei e, portanto, como domínio pessoal do chefe ou patriarca. Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido, segundo a vontade arbitrária do rei, aos chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais e militares, mediante serviços e/ou tributos. Em geral, esse tipo de propriedade prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de irrigação e de transporte de água, que um proprietário isolado não poderia realizar, não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria que atravessar terras de outros proprietários, devendo pagar-lhes tributos ou fazer-lhes guerra. A propriedade, ficando na posse do rei, permitia que este usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e transporte de águas, ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar toda e qualquer terra para realizar as obras;
2. como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da aldeia, que pagava tributos ao rei em troca de proteção, submetendo-se ao poder régio e, portanto, à autoridade religiosa e militar do senhor.
Seja num caso como noutro, o rei era forçado a exercer um controle cerrado sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras, pois as rebeliões eram freqüentes e a disputa pelo poder interminável. Tal controle era feito por representantes do rei, quando percorriam as terras registrando a produção e recolhendo tributos, punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos régios, sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e confederações de aldeias.
Com isso, o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos, custeados pelos chefes locais e suas aldeias. Os funcionários régios precisavam saber ler, escrever e contar. Nas sociedades de que falamos, tais conhecimentos eram privilégio de um grupo, os sacerdotes. Por esse motivo, a ênfase no caráter sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o poderio sacerdotal, sustentáculo indispensável do poder régio. Deuses e armas eram os pilares da autoridade.
Assim constituído, o poder possuía as seguintes características:
? despótico ou patriarcal: era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar, por alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e os súditos ofereciam lealdade e obediência, jurando cumprir a vontade do primeiro;
? total: o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quanto ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do chefe), para estabelecer os vínculos com o sagrado, isto é, com os deuses e antepassados (o chefe detém o poder religioso), para decidir quanto à guerra e à paz (o chefe detém o poder militar). A tomada de decisão cabia exclusivamente ao rei. Este possuía conselheiros (sacerdotes e militares), que o informavam e lhe sugeriam condutas e ações, mas a decisão cabia apenas a ele. O conselho era secreto, os motivos de uma decisão eram secretos, o que se passava entre o rei e seus conselheiros era secreto. Somente a decisão tornava-se pública, sob a forma de um decreto real;
? incorporado ou corporificado: o detentor do poder figurava em seu próprio corpo as características do poder, apresentando-se como manifestação da própria comunidade. Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige, seu peito encarnava a vontade que ordena, seus membros superiores encarnavam os delegados que o representavam (sacerdotes e militares), seus membros inferiores encarnavam os súditos que o obedeciam. Essa figuração do poder no corpo do próprio rei indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada, na qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado, só tendo existência social graças a esse lugar. O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia, mas também a forte centralização da autoridade, concentrada na cabeça e no peito do dirigente;
? mágico: por receber a autoridade dos deuses, o detentor do poder possuía força sobrenatural ou mágica. Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir aquilo que era dito (o rei dizia “faça-se” e as coisas aconteciam simplesmente porque ele as havia dito e desejado); seus gestos e desejos tinham força para matar e curar, sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele, dele dependiam a fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na guerra, o início ou o fim de uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;
? transcendente: por ser de origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade. Essa divinização o colocava acima e fora da comunidade. Tal separação levava a considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente, graças ao qual via tudo, sabia tudo e podia tudo, tendo o império total sobre a comunidade;
? hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um membro da família real. A família reinante constituía uma linhagem e uma dinastia, que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do poder por uma outra família, que dava início a uma nova linhagem ou dinastia.
A invenção da política
Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder. Embora, nos começos, gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das armas, representante da divindade.
A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do rei, nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve-se como propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade estava em não formarem uma casta fechada sobre si mesma, porém aberta à incorporação de novas famílias e de indivíduos ou não-proprietários enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma, há três aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política. O primeiro, como assinalamos há pouco, é a forma da propriedade da terra; o segundo, o fenômeno da urbanização; e o terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.
Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias independentes, e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formou-se na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram, fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias. Uma luta de classes perpassa a história grega e romana exigindo solução.
A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de “os pobres”.
A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres. Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras externas, tanto para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar fazia com que todos se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas decisões econômicas e legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução. Essa solução foi a política.
Finalmente, os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por exemplo, a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas demos; em Roma, em tribus.
Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os não-proprietários ou os pobres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um representante – o tribuno da plebe – para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era, assim, uma oligarquia.
Diante do poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político porque:
? separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio patriarcal e patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à coletividade; separaram privado e público e impediram a identificação do poder político com a pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por eleições entre os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
? separaram autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao segundo. Isso não significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as missões militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e só depois realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos eram hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos cidadãos;
? separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a divinização dos governantes. Isso não significa que o poder político deixasse de ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os augúrios, em Roma, eram respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém, que os dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade sacerdotal;
? criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que fosse confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância impessoal e coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e matar para vingar, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime. O monopólio da força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito;
? criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos, isto é, os tribunais e os magistrados;
? criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes;
? criaram o espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o senado romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por meio do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o coração da invenção política. De fato, e como vimos, a marca do poder despótico é o segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário, introduz a prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade conheça as deliberações e participe da tomada de decisão.
Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar problemas novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de novas leis e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram a política inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção de possível ou de possibilidade, isto é, a idéia de uma criação contínua da realidade social.
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a política é inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece como trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental. Eis por que os historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu ao domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política: para eles, o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era agrária e escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas, construção de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem escondê-los sob a sacralização do poder e sem fechar-se à temporalidade e às mudanças.
Sociedade contra o Estado
Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando diferenças sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e pobres, livres e escravos, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.
Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia que, como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das terras, armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido por uma parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Nos dois casos, surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la, comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.
Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita, moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.
Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas, astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes, pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a evangelização e o extermínio.
A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização. Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e possuem sociedades carentes: falta-lhes o mercado (moeda e comércio), a escrita (alfabética), a História e o Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio, sem escrita, sem memória e sem Estado.
O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -, transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.
As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrando-se num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos três grandes impérios situados no México, na América Central e no norte da América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na forma das chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder.
As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente.
Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas tradições e necessidades.
A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu exterior, isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se refere à guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é representar a comunidade perante outras comunidades.
O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois este pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções: doar presentes, fazer a paz e falar.
Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o chefe deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo, isto é, devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado.
Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir. Não dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz ele? A paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como comunidade indivisa.
Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força, liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o escuta.
A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma, diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.
Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas funções para criar o poder separado, ele é morto pela comunidade.
Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos, a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga lembrança utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades, mundo afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada, das divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção social?
[i] Na Antiguidade, família não era o que é hoje para nós (pai, mãe e filhos), mas era uma unidade econômica constituída pelos antepassados e descendentes, pai, mãe, filhos, genros, noras, tios e sobrinhos, escravos, animais, terras, edificações, plantações, bens móveis e imóveis – pessoas e coisas eram propriedades do patriarca (despotes ou pater-familias).