Ivo Pitz
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O texto a seguir pertence ao livro de Marilena Chauí, publicado pela Editora Ática, em 2000. Seu título é" Convite à Filosofia"

Disponível também em: http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_42.htm

Unidade 8 - O mundo da prática // Capítulo 5 - A filosofia moral

Ética ou filosofia moral

Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social.

No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir dos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates.

Percorrendo praças e ruas de Atenas – contam Platão e Aristóteles -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir.

Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem?

As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem.

Por que os atenienses sentiam-se embaraçados (e mesmo irritados) com as perguntas socráticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “É certo fazer tal ação, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras, embaraçando-se ou irritando-se quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos. Tais confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.

Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos.

Sócrates embaraçava os atenienses porque os forçava a indagar qual a origem e a essência das virtudes (valores e obrigações) que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas. Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou má, virtuosa ou viciosa? Por que, por exemplo, a coragem era considerada virtude e a covardia, vício? Por que valorizavam positivamente a justiça e desvalorizavam a injustiça, combatendo-a? Numa palavra: o que eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam sido ensinados?

Os costumes, porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, são considerados inquestionáveis e quase sagrados (as religiões tendem a mostrá-los como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos). Ora, a palavra costume se diz, em grego, ethos – donde, ética – e, em latim, mores – donde, moral. Em outras palavras, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Sócrates indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes.

No entanto, a língua grega possui uma outra palavra que, infelizmente, precisa ser escrita, em português, com as mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos. Em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e: uma vogal breve, chamada epsilon, e uma vogal longa, chamada eta. Ethos, escrita com a vogal longa (ethos com eta), significa costume; porém, escrita com a vogal breve (ethos com epsilon), significa caráter, índole natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada um é capaz de praticar. Refere-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética individuais.

Dirigindo-se aos atenienses, Sócrates lhes perguntava qual o sentido dos costumes estabelecidos (ethos com eta: os valores éticos ou morais da coletividade, transmitidos de geração a geração), mas também indagava quais as disposições de caráter (ethos com epsilon: características pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam alguém a respeitar ou a transgredir os valores da cidade, e por quê.

Ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates realiza na verdade duas interrogações. Por um lado, interroga a sociedade para saber se o que ela costuma (ethos com eta) considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os indivíduos para saber se, ao agir, possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter ou sua índole (ethos com epsilon) são realmente virtuosos e bons. A indagação ética socrática dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo.

As questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral, porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser estabelecidos, ao encontrar seu ponto de partida: a consciência do agente moral. É sujeito ético moral somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que é o bem não poderá deixar de agir virtuosamente.

Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético e saber prático. O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência. Temos conhecimento teorético da Natureza. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética é um saber prático. O saber prático, por seu turno, distingue-se de acordo com a prática, considerada como práxis ou como técnica. A ética refere-se à práxis.

Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis. Assim, por exemplo, dizer a verdade é uma virtude do agente, inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que é proferir uma verdade. Na práxis ética somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa. Ao contrário, na técnica, diz Aristóteles, o agente, a ação e a finalidade da ação estão separados, sendo independentes uns dos outros. Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida pela ação. A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente e da ação fabricadora. Dessa maneira, Aristóteles distingue a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente com a ação e com a finalidade da ação.

Também devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas. Estas não só são definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha. Em outras palavras, quando o curso de uma realidade segue leis necessárias e universais, não há como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer.

Não deliberamos sobre as estações do ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela Natureza, isto é, pela necessidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não deliberamos e não decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é e o que será sempre, independentemente de nós. Deliberamos e decidimos sobre o possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e de nossa ação. Aristóteles acrescenta à consciência moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética.

A importância dada por Aristóteles à vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática. O prudente é aquele que, em todas as situações, é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética, ou seja, entre as várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros.

Se examinarmos o pensamento filosófico dos antigos, veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida moral:

1. por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade, que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa;

2. a virtude é uma força interior do caráter, que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão, pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano;

3. a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar, referindo-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber o que está em nosso poder significa, principalmente, não se deixar arrastar pelas circunstâncias, nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação.

O sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de um outro, à tirania das paixões, mas obedece apenas à sua consciência – que conhece o bem e as virtudes – e à sua vontade racional – que conhece os meios adequados para chegar aos fins morais. A busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética.

Os filósofos antigos (gregos e romanos) consideravam a vida ética transcorrendo como um embate contínuo entre nossos apetites e desejos – as paixões – e nossa razão. Por natureza, somos passionais e a tarefa primeira da ética é a educação de nosso caráter ou de nossa natureza, para seguirmos a orientação da razão. A vontade possuía um lugar fundamental nessa educação, pois era ela que deveria ser fortalecida para permitir que a razão controlasse e dominasse as paixões.

O passional é aquele que se deixa arrastar por tudo quanto satisfaça imediatamente seus apetites e desejos, tornando-se escravo deles. Desconhece a moderação, busca tudo imoderadamente, acabando vítima de si mesmo.

Podemos resumir a ética dos antigos em três aspectos principais:

1. o racionalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão, que conhece o bem, o deseja e guia nossa vontade até ele;

2. o naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza (o cosmos) e com nossa natureza (nosso ethos), que é uma parte do todo natural;

3. a inseparabilidade entre ética e política: isto é, entre a conduta do indivíduo e os valores da sociedade, pois somente na existência compartilhada com outros encontramos liberdade, justiça e felicidade.

A ética, portanto, era concebida como educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos, apetites e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade, e para formá-lo como membro da coletividade sociopolítica. Sua finalidade era a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também deveriam ser virtuosos.

O cristianismo: interioridade e dever

Diferentemente de outras religiões da Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. Em outras palavras, enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e politicamente organizada, o Deus cristão relaciona-se diretamente com os indivíduos que nele crêem. Isso significa, antes de qualquer coisa, que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade, mas por sua relação espiritual e interior com Deus. Dessa maneira, o cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética:

● em primeiro lugar, a idéia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade (a polis) nem com os outros. Nossa relação com os outros depende da qualidade de nossa relação com Deus, único mediador entre cada indivíduo e os demais. Por esse motivo, as duas virtudes cristãs primeiras e condições de todas as outras são a fé (qualidade da relação de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos outros e a responsabilidade pela salvação dos outros, conforme exige a fé). As duas virtudes são privadas, isto é, são relações do indivíduo com Deus e com os outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um;

● em segundo lugar, a afirmação de que somos dotados de vontade livre – ou livre-arbítrio – e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto é, para a transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca). Em outras palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos, havendo, portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos tornava morais, para o cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais.

Qual o auxílio divino sem o qual a vida ética seria impossível? A lei divina revelada, que devemos obedecer obrigatoriamente e sem exceção.

O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral: a idéia do dever.

Por meio da revelação aos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação e o castigo. Aos humanos, cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus, cumprindo-as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever. Estes tornam morais um sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma ação.

Mesmo quando, a partir do Renascimento, a filosofia moral distancia-se dos princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética, a idéia do dever permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental. Com isso, a filosofia moral passou a distinguir três tipos fundamentais de conduta:

1. a conduta moral ou ética, que se realiza de acordo com as normas e as regras impostas pelo dever;

2. a conduta imoral ou antiética, que se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo dever;

3. a conduta indiferente à moral, quando agimos em situações que não são definidas pelo bem e pelo mal, e nas quais não se impõem as normas e as regras do dever.

Juntamente com a idéia do dever, a moral cristã introduziu uma outra, também decisiva na constituição da moralidade ocidental: a idéia de intenção.

Até o cristianismo, a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus, entre a alma invisível e a divindade. Como conseqüência, passou-se a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo quanto acontece em nosso interior. O dever não se refere apenas às ações visíveis, mas também às intenções invisíveis, que passam a ser julgadas eticamente. Eis por que um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções. Sua alma, invisível, tem o testemunho do olhar de Deus, que a julga.

Natureza humana e dever

O cristianismo introduz a idéia do dever para resolver um problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem e o mal. No entanto, essa idéia cria um problema novo. Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência (vontade, razão, coração) as normas da conduta virtuosa, submetendo-se apenas ao bem, jamais submetendo-se a poderes externos à consciência, como falar em comportamento ético por dever? Este não seria o poder externo de uma vontade externa (Deus), que nos domina e nos impõe suas leis, forçando-nos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência?

Em outras palavras, se a ética exige um sujeito autônomo, a idéia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós?

Um dos filósofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau, no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos.

O dever simplesmente nos força a recordar nossa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição exterior. Obedecendo ao dever (à lei divina inscrita em nosso coração), estamos obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à nossa razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa.

Uma outra resposta, também no final do século XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se à “moral do coração” de Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.

A exposição kantiana parte de duas distinções:

1. a distinção entre razão pura teórica ou especulativa e razão pura prática;

2. a distinção entre ação por causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade.

Razão pura teórica e prática são universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares – podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações, mas as formas da atividade racional de conhecimento e da ação são universais. Em outras palavras, o sujeito, em ambas, é sujeito transcendental, como vimos na teoria do conhecimento. A diferença entre razão teórica e prática encontra-se em seus objetos. A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós, um sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa intervenção; a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária, mas cria sua própria realidade, na qual se exerce. Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidade/liberdade.

A Natureza é o reino da necessidade, isto é, de acontecimentos regidos por seqüências necessárias de causa e efeito – é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia. Diferentemente do reino da Natureza, há o reino humano da práxis, no qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade.

A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever. Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos.

Resta, porém, uma questão: se somos racionais e livres, por que valores, fins e leis morais não são espontâneos em nós, mas precisam assumir a forma do dever?

Responde Kant: porque não somos seres morais apenas. Também somos seres naturais, submetidos à causalidade necessária da Natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites, impulsos, desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da Natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causalidade natural inexorável. Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética.

A Natureza nos impele a agir por interesse. Este é a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos. Além disso, o interesse nos faz viver na ilusão de que somos livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas livremente por nós, quando, na verdade, são um impulso cego determinado pela causalidade natural. Agir por interesse é agir determinado por motivações físicas, psíquicas, vitais, à maneira dos animais.

Visto que apetites, impulsos, desejos, tendências, comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do que a razão, a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa parte natural e impor-nos nosso ser moral. Elas o fazem obrigando-nos a passar das motivações do interesse para o dever. Para sermos livres, precisamos ser obrigados pelo dever de sermos livres.

Assim, à pergunta que fizemos no capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa natureza espontaneamente passional, Kant responderá que, pelo contrário, a violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos apetites e impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza.

O dever, afirma Kant, não se apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos, que definiriam a essência de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada circunstância de nossas vidas. O dever não é um catálogo de virtudes nem uma lista de “faça isto” e “não faça aquilo”. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral.

Essa forma não é indicativa, mas imperativa. O imperativo não admite hipóteses (“se… então”) nem condições que o fariam valer em certas situações e não valer em outras, mas vale incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as ações morais. Por isso, o dever é um imperativo categórico. Ordena incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, mas a lei moral interior.

O imperativo categórico exprime-se numa fórmula geral: Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal. Em outras palavras, o ato moral é aquele que se realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma.

Essa fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever. São elas:

1. Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza;

2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio;

3. Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.

A primeira máxima afirma a universalidade da conduta ética, isto é, aquilo que todo e qualquer ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável, válida para todos e em todo tempo e lugar. A ação por dever é uma lei moral para o agente.

A segunda máxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e, portanto, a exigência de que sejam tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses.

A terceira máxima afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e, portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma. A terceira máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins.

O imperativo categórico não enuncia o conteúdo particular de uma ação, mas a forma geral das ações morais. As máximas deixam clara a interiorização do dever, pois este nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral. O acordo entre vontade e dever é o que Kant designa como vontade boa que quer o bem.

O motivo moral da vontade boa é agir por dever. O móvel moral da vontade boa é o respeito pelo dever, produzido em nós pela razão. Obediência à lei moral, respeito pelo dever e pelos outros constituem a bondade da vontade ética.

O imperativo categórico não nos diz para sermos honestos, oferecendo-nos a essência da honestidade; nem para sermos justos, verazes, generosos ou corajosos a partir da definição da essência da justiça, da verdade, da generosidade ou da coragem. Não nos diz para praticarmos esta ou aquela ação determinada, mas nos diz para sermos éticos cumprindo o dever (as três máximas morais). É este que determina por que uma ação moral deverá ser sempre honesta, justa, veraz, generosa ou corajosa. Ao agir, devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais, isto é, com as máximas do dever.

Por que, por exemplo, mentir é imoral? Porque o mentiroso transgride as três máximas morais. Ao mentir, não respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciência, racionalidade e liberdade), pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma informação verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fé do outro. Também não respeita a segunda máxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o gênero humano deveria abdicar da razão e do conhecimento, da reflexão e da crítica, da capacidade para deliberar e escolher, vivendo na mais completa ignorância, no erro e na ilusão.

Por que um político corrupto é imoral? Porque transgride as três máximas. Por que o homicídio é imoral? Porque transgride as três máximas.

As respostas de Rousseau e Kant, embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade, qual seja, explicar por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis. A solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior, desfazendo a impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha à nossa.

Cultura e dever

Rousseau e Kant procuraram conciliar o dever e a idéia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à moral. No entanto, ao enfatizarem a questão da natureza (Natureza e natureza humana), tenderam a perder de vista o problema da relação entre o dever e a Cultura, pois poderíamos repetir, agora, a pergunta que fizemos antes: Se a ética exige um sujeito consciente e autônomo, como explicar que a moral exija o cumprimento do dever, definido como um conjunto de valores, normas, fins e leis estabelecidos pela Cultura? Não estaríamos de volta ao problema da exterioridade entre o sujeito e o dever? A resposta a essa questão foi trazida, no século XIX, por Hegel.

Hegel critica Rousseau e Kant por dois motivos. Em primeiro lugar, por terem dado atenção à relação sujeito humano-Natureza (a relação entre razão e paixões), esquecendo a relação sujeito humano-Cultura e História. Em segundo lugar, por terem admitido a relação entre a ética e a sociabilidade dos seres humanos, mas tratando-a a partir de laços muito frágeis, isto é, como relações pessoais diretas entre indivíduos isolados ou independentes, quando deveriam tê-la tomado a partir dos laços fortes das relações sociais, fixadas pelas instituições sociais (família, sociedade civil, Estado). As relações pessoais entre indivíduos são determinadas e mediadas por suas relações sociais. São estas últimas que determinam a vida ética ou moral dos indivíduos.

Somos, diz Hegel, seres históricos e culturais. Isso significa que, além de nossa vontade individual subjetiva (que Rousseau chamou de coração e Kant de razão prática), existe uma outra vontade, muito mais poderosa, que determina a nossa: a vontade objetiva, inscrita nas instituições ou na Cultura.

A vontade objetiva – impessoal, coletiva, social, pública – cria as instituições e a moralidade como sistema regulador da vida coletiva por meio de mores, isto é, dos costumes e dos valores de uma sociedade, numa época determinada. A moralidade é uma totalidade formada pelas instituições (família, religião, artes, técnicas, ciências, relações de trabalho, organização política, etc.), que obedecem, todas, aos mesmos valores e aos mesmos costumes, educando os indivíduos para interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura.

A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural. Realiza-se plenamente quando interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos espontânea e livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os discutirmos, sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os deseja. O que é, então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a totalidade ética ou moralidade.

Como conseqüência, o imperativo categórico não poderá ser uma forma universal desprovida de conteúdo determinado, como afirmara Kant, mas terá, em cada época, em cada sociedade e para cada Cultura, conteúdos determinados, válidos apenas para aquela formação histórica e cultural. Assim cada sociedade, em cada época de sua História, define os valores positivos e negativos, os atos permitidos e os proibidos para seus membros, o conteúdo dos deveres e do imperativo moral. Ser ético e livre será, portanto, pôr-se de acordo com as regras morais de nossa sociedade, interiorizando-as.

Hegel afirma que podemos perceber ou reconhecer o momento em que uma sociedade e uma Cultura entram em declínio, perdem força para conservar-se e abrem-se às crises internas que anunciam seu término e sua passagem a uma outra formação sociocultural. Esse momento é aquele no qual os membros daquela sociedade e daquela Cultura contestam os valores vigentes, sentem-se oprimidos e esmagados por eles, agem de modo a transgredi-los. É o momento no qual o antigo acordo entre as vontades subjetivas e a vontade objetiva rompem-se inexoravelmente, anunciando um novo período histórico.

Numa perspectiva algo semelhante à hegeliana encontra-se, no século XX, o filósofo francês Henri Bergson. Como Hegel, Bergson procura compreender a relação dever-Cultura ou dever-História e, portanto, as mudanças nas formas e no conteúdo da moralidade. Distingue ele duas morais: a moral fechada e a aberta.

A moral fechada é o acordo entre os valores e os costumes de uma sociedade e os sentimentos e as ações dos indivíduos que nela vivem. É a moral repetitiva, habitual, respeitada quase automaticamente por nós. Em contrapartida, a moral aberta é uma criação de novos valores e de novas condutas que rompem a moral fechada, instaurando uma ética nova. Os criadores éticos são, para Bergson, indivíduos excepcionais – heróis, santos, profetas, artistas -, que colocam suas vidas a serviço de um tempo novo, inaugurado por eles, graças a ações exemplares, que contrariam a moral fechada vigente.

Hegel diria que a moral aberta bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise, prestes a terminar, porque um novo período histórico-cultural está para começar. A moral fechada quando sentida como repressora e opressora, e a totalidade ética, quando percebida como contrária à subjetividade individual, indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados como violência e não mais como realização ética.

História e virtudes

Viemos observando que os valores morais modificam-se na História porque seu conteúdo é determinado por condições históricas. Podemos comprovar a determinação histórica do conteúdo dos valores, examinando as virtudes definidas em diferentes épocas.

Se tomarmos a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, nela encontraremos a síntese das virtudes que constituíam a arete (a virtude ou excelência ética) e a moralidade grega durante o tempo em que a polis autônoma foi a referência social da Grécia.

Aristóteles distingue vícios e virtudes pelo critério do excesso, da falta e da moderação: um vício é um sentimento ou uma conduta excessivos, ou, ao contrário, deficientes; uma virtude, um sentimento ou uma conduta moderados.

Resumidamente, eis o quadro aristotélico:

Virtude
Vício por excesso
Vício por deficiência
Coragem
Temeridade
Covardia
Temperança
Libertinagem
Insensibilidade
Prodigalidade
Esbanjamento

Avareza

Magnificência

Vulgaridade

Vileza
Respeito próprio
Vaidade
Modéstia

Prudência

Ambição
Moleza

Gentileza

Irascibilidade

Indiferença

Veracidade

Orgulho
Descrédito próprio

Agudeza de espírito

Zombaria
Rusticidade
Amizade
Condescendência
Enfado

Justa indignação

Inveja

Malevolência

Quando examinamos as virtudes definidas pelo cristianismo, descobrimos que, embora as aristotélicas não sejam afastadas, deixam de ser as mais relevantes. O quadro cristão pode ser assim resumido:

● Virtudes teologais: fé, esperança, caridade;

● Virtudes cardeais: coragem, justiça, temperança, prudência;

● Pecados capitais: gula, avareza, preguiça, luxúria, cólera, inveja e orgulho.

● Virtudes morais: sobriedade, prodigalidade, trabalho, castidade, mansidão, generosidade, modéstia.

Observamos o aparecimento de virtudes novas, concernentes à relação do crente com Deus (virtudes teologais), e da justiça como virtude particular (para Aristóteles, a justiça é o resultado da virtude e não uma das virtudes); a amizade é substituída pela caridade (responsabilidade pela salvação do outro); os vícios são transformados em pecados (portanto, voltados para a relação do crente com a lei divina); e, nas virtudes morais, encontramos um vício aristotélico – a modéstia -, além do aparecimento de virtudes ignoradas ou desconhecidas por Aristóteles – humildade, castidade, mansidão.

Surge também como virtude algo que, para um grego ou um romano, jamais poderia fazer parte dos valores do homem livre: o trabalho. O ócio, considerado pela sociedade escravista greco-romana como condição para o exercício da política, torna-se, agora, vício da preguiça. Lutero dirá: “Mente desocupada, oficina do diabo”.

Se, agora, tomarmos como referência um filósofo do século XVII, Espinosa, veremos o quadro alterar-se profundamente.

Para Espinosa, somos seres naturalmente passionais, porque sofremos a ação de causas exteriores a nós. Em outras palavras, ser passional é ser passivo, deixando-se dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e à nossa alma. Ora, por natureza, vivemos rodeados por outros seres, mais fortes do que nós, que agem sobre nós. Por isso, as paixões não são boas nem más: são naturais. Três são as paixões originais: alegria, tristeza e desejo. As demais derivam-se destas. Assim, da alegria nascem o amor, a devoção, a esperança, a segurança, o contentamento, a misericórdia, a glória; da tristeza surgem o ódio, a inveja, o orgulho, o arrependimento, a modéstia, o medo, o desespero, o pudor; do desejo provém a gratidão, a cólera, a crueldade, a ambição, o temor, a ousadia, a luxúria, a avareza.

Uma paixão triste é aquela que diminui a capacidade de ser e agir de nosso corpo e de nossa alma; ao contrário, uma paixão alegre aumenta a capacidade de existir e agir de nosso corpo e de nossa alma. No caso do desejo, podemos ter paixões tristes (como a crueldade, a ambição, a avareza) ou alegres (como a gratidão e a ousadia).

Que é o vício? Submeter-se às paixões, deixando-se governar pelas causas externas.

Que é a virtude? Ser causa interna de nossos sentimentos, atos e pensamentos. Ou seja, passar da passividade (submissão a causas externas) à atividade (ser causa interna). A virtude é, pois, passar da paixão à ação, tornar-se causa ativa interna de nossa existência, atos e pensamentos. As paixões e os desejos tristes nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais passivos. As paixões e os desejos alegres nos fortalecem e nos preparam para passar da passividade à atividade.

Como sucumbimos ao vício? Deixando-nos dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza. O vício não é um mal: é fraqueza para existir, agir e pensar.

Como passamos da paixão à ação ou à virtude? Transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa. A virtude não é um bem: é a força para ser e agir autonomamente.

Observamos, assim, que a ética espinosista evita oferecer um quadro de valores ou de vícios e virtudes, distanciando-se de Aristóteles e da moral cristã, para buscar na idéia moderna de indivíduo livre o núcleo da ação moral. Em sua obra, Ética, Espinosa jamais fala em pecado e em dever; fala em fraqueza e em força para ser, pensar e agir.

As virtudes aristotélicas inserem-se numa sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos, donde a proeminência da amizade e da justiça. As virtudes cristãs inserem-se numa sociedade voltada para a relação dos humanos com Deus e com a lei divina. A virtude espinosista toma a relação do indivíduo com a Natureza e a sociedade, centrando-se nas idéias de integridade individual e de força interna para relacionar-se livremente com ambas. Como, porém, vivemos numa cultura cristã, a perspectiva do cristianismo, embora historicamente datada, tende a ser dominante, ainda que se altere periodicamente para adaptar-se a novas exigências históricas. Assim, no século XVII, Espinosa abandona as noções cristãs de pecado e dever que, no século XVIII, reaparecem com Kant.

Razão, desejo e vontade

A tradição filosófica que examinamos até aqui constitui o racionalismo ético, pois atribui à razão humana o lugar central na vida ética. Duas correntes principais formam a tradição racionalista: aquela que identifica razão com inteligência, ou intelecto – corrente intelectualista – e aquela que considera que, na moral, a razão identifica-se com a vontade – corrente voluntarista.

Para a concepção intelectualista, a vida ética ou vida virtuosa depende do conhecimento, pois é somente por ignorância que fazemos o mal e nos deixamos arrastar por impulsos e paixões contrários à virtude e ao bem. O ser humano, sendo essencialmente racional, deve fazer com que sua razão ou inteligência (o intelecto) conheça os fins morais, os meios morais e a diferença entre bem e mal, de modo a conduzir a vontade no momento da deliberação e da decisão. A vida ética depende do desenvolvimento da inteligência ou razão, sem a qual a vontade não poderá atuar.

Para a concepção voluntarista, a vida ética ou moral depende essencialmente da nossa vontade, porque dela depende nosso agir e porque ela pode querer ou não querer o que a inteligência lhe ordena. Se a vontade for boa, seremos virtuosos, se for má, seremos viciosos. A vontade boa orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma ação, enquanto a vontade má desvia nossa razão da boa escolha, no momento de deliberar e de agir. A vida ética depende da qualidade de nossa vontade e da disciplina para forçá-la rumo ao bem. O dever educa a vontade para que se torne reta e boa.

Nas duas correntes, porém, há concordância quanto à idéia de que, por natureza, somos seres passionais, cheios de apetites, impulsos e desejos cegos, desenfreados e desmedidos, cabendo à razão (seja como inteligência, no intelectualismo, seja como vontade, no voluntarismo) estabelecer limites e controles para paixões e desejos.

Egoísmo, agressividade, avareza, busca ilimitada de prazeres corporais, sexualidade sem freios, mentira, hipocrisia, má-fé, desejo de posse (tanto de coisas como de pessoas), ambição desmedida, crueldade, medo, covardia, preguiça, ódio, impulsos assassinos, desprezo pela vida e pelos sentimentos alheios são algumas das muitas paixões que nos tornam imorais e incapazes de relações decentes e dignas com os outros e conosco mesmos. Quando cedemos a elas, somos viciosos e culpados. A ética apresenta-se, assim, como trabalho da inteligência e/ou da vontade para dominar e controlar essas paixões.

Uma paixão – amor, ódio, inveja, ambição, orgulho, medo – coloca-nos à mercê de coisas e pessoas que desejamos possuir ou destruir. O racionalismo ético define a tarefa da educação moral e da conduta ética como poderio da razão para impedir-nos de perder a liberdade sob os efeitos de paixões desmedidas e incontroláveis. Para tanto, a ética racionalista distingue necessidade, desejo e vontade.

A necessidade diz respeito a tudo quanto necessitamos para conservar nossa existência: alimentação, bebida, habitação, agasalho no frio, proteção contra as intempéries, relações sexuais para a procriação, descanso para desfazer o cansaço, etc.

Para os seres humanos, satisfazer às necessidades é fonte de satisfação. O desejo parte da satisfação de necessidades, mas acrescenta a elas o sentimento do prazer, dando às coisas, às pessoas e às situações novas qualidades e sentidos. No desejo, nossa imaginação busca o prazer e foge da dor pelo significado atribuído ao que é desejado ou indesejado.

A maneira como imaginamos a satisfação, o prazer, o contentamento que alguma coisa ou alguém nos dão transforma esta coisa ou este alguém em objeto de desejo e o procuramos sempre, mesmo quando não conseguimos possuí-lo ou alcançá-lo. O desejo é, pois, a busca da fruição daquilo que é desejado, porque o objeto do desejo dá sentido à nossa vida, determina nossos sentimentos e nossas ações. Se, como os animais, temos necessidades, somente como humanos temos desejos. Por isso, muitos filósofos afirmam que a essência dos seres humanos é desejar e que somos seres desejantes: não apenas desejamos, mas sobretudo desejamos ser desejados por outros.

A vontade difere do desejo por possuir três características que este não possui:

1. o ato voluntário implica um esforço para vencer obstáculos. Estes podem ser materiais (uma montanha surge no meio do caminho), físicos (fadiga, dor) ou psíquicos (desgosto, fracasso, frustração). A tenacidade e a perseverança, a resistência e a continuação do esforço são marcas da vontade e por isso falamos em força de vontade;

2. o ato voluntário exige discernimento e reflexão antes de agir, isto é, exige deliberação, avaliação e tomada de decisão. A vontade pesa, compara, avalia, discute, julga antes da ação;

3. a vontade refere-se ao possível, isto é, ao que pode ser ou deixar de ser e que se torna real ou acontece graças ao ato voluntário, que atua em vista de fins e da previsão das conseqüências. Por isso, a vontade é inseparável da responsabilidade.

O desejo é paixão. A vontade, decisão. O desejo nasce da imaginação. A vontade se articula à reflexão. O desejo não suporta o tempo, ou seja, desejar é querer a satisfação imediata e o prazer imediato. A vontade, ao contrário, realiza-se no tempo; o esforço e a ponderação trabalham com a relação entre meios e fins e aceitam a demora da satisfação. Mas é o desejo que oferece à vontade os motivos interiores e os fins exteriores da ação. À vontade cabe a educação moral do desejo. Na concepção intelectualista, a inteligência orienta a vontade para que esta eduque o desejo. Na concepção voluntarista, a vontade boa tem o poder de educar o desejo, enquanto a vontade má submete-se a ele e pode, em muitos casos, pervertê-lo.

Consciência, desejo e vontade formam o campo da vida ética: consciência e desejo referem-se às nossas intenções e motivações; a vontade, às nossas ações e finalidades. As primeiras dizem respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos internos ao sujeito moral; as últimas, à qualidade da atitude externa, das condutas e dos comportamentos do sujeito moral.

Para a concepção racionalista, a filosofia moral é o conhecimento das motivações e intenções (que movem interiormente o sujeito moral) e dos meios e fins da ação moral capazes de concretizar aquelas motivações e intenções. Convém observar que a posição de Kant, embora racionalista, difere das demais porque considera irrelevantes as motivações e intenções do sujeito, uma vez que a ética diz respeito à forma universal do ato moral, como ato livre de uma vontade racional boa, que age por dever segundo as leis universais que deu a si mesma. O imperativo categórico exclui motivos e intenções (que são sempre particulares) porque estes o transformariam em algo condicionado por eles e, portanto, o tornariam um imperativo hipotético, destruindo-o como fundamento universal da ação ética por dever.

Ética das emoções e do desejo

O racionalismo ético não é a única concepção filosófica da moral. Uma outra concepção filosófica é conhecida como emotivismo ético.

Para o emotivismo ético, o fundamento da vida moral não é a razão, mas a emoção. Nossos sentimentos são causas das normas e dos valores éticos. Inspirando-se em Rousseau, alguns emotivistas afirmam a bondade natural de nossos sentimentos e nossas paixões, que são, por isso, a forma e o conteúdo da existência moral como relação intersubjetiva e interpessoal. Outros emotivistas salientam a utilidade dos sentimentos ou das emoções para nossa sobrevivência e para nossas relações com os outros, cabendo à ética orientar essa utilidade de modo a impedir a violência e garantir relações justas entre os seres humanos.

Há ainda uma outra concepção ética, francamente contrária à racionalista (e, por isso, muitas vezes chamada de irracionalista), que contesta à razão o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões, identificando a liberdade com a plena manifestação do desejante e do passional. Essa concepção encontra-se em Nietzsche e em vários filósofos contemporâneos.

Embora com variantes, essa concepção filosófica pode ser resumida nos seguintes pontos principais, tendo como referência a obra nietzscheana A genealogia da moral:

● a moral racionalista foi erguida com finalidade repressora e não para garantir o exercício da liberdade;

● a moral racionalista transformou tudo o que é natural e espontâneo nos seres humanos em vício, falta, culpa, e impôs a eles, com os nomes de virtude e dever, tudo o que oprime a natureza humana;

● paixões, desejos e vontade referem-se à vida e à expansão de nossa força vital, portanto, não se referem, espontaneamente, ao bem e ao mal, pois estes são uma invenção da moral racionalista;

● a moral racionalista foi inventada pelos fracos para controlar e dominar os fortes, cujos desejos, paixões e vontade afirmam a vida, mesmo na crueldade e na agressividade. Por medo da força vital dos fortes, os fracos condenaram paixões e desejos, submeteram a vontade à razão, inventaram o dever e impuseram castigos para os transgressores;

● transgredir normas e regras estabelecidas é a verdadeira expressão da liberdade e somente os fortes são capazes dessa ousadia. Para disciplinar e dobrar a vontade dos fortes, a moral racionalista, inventada pelos fracos, transformou a transgressão em falta, culpa e castigo;

● a força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma, como força da imaginação criadora. Por isso, os fortes desconhecem angústia, medo, remorso, humildade, inveja. A moral dos fracos, porém, é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida, invejam os fortes e procuram, pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito, vingar-se da força vital;

● a moral dos fracos é produto do ressentimento, que odeia e teme a vida, envenenando-a com a culpa e o pecado, voltando contra si mesma o ódio à vida;

● a moral dos ressentidos, baseada no medo e no ódio à vida (às paixões, aos desejos, à vontade forte), inventa uma outra vida, futura, eterna, incorpórea, que será dada como recompensa aos que sacrificarem seus impulsos vitais e aceitarem os valores dos fracos;

● a sociedade, governada por fracos hipócritas, impõe aos fortes modelos éticos que os enfraqueçam e os tornem prisioneiros dóceis da hipocrisia da moral vigente;

● é preciso manter os fortes, dizendo-lhes que o bem é tudo o que fortalece o desejo da vida e o mal tudo o que é contrário a esse desejo.

Para esses filósofos, que podemos chamar de anti-racionalistas, a moral racionalista ou dos fracos e ressentidos que temem a vida, o corpo, o desejo e as paixões é a moral dos escravos, dos que renunciam à verdadeira liberdade ética. São exemplos dessa moral de escravos: a ética socrática, a moral kantiana, a moral judaico-cristã, a ética da utopia socialista, a ética democrática, em suma, toda moral que afirme que os humanos são iguais, seja por serem racionais (Sócrates, Kant), seja por serem irmãos (religião judaico-cristã), seja por possuírem os mesmos direitos (ética socialista e democrática).

Contra a concepção dos escravos, afirma-se a moral dos senhores ou a ética dos melhores, dos aristoi[i], a moral aristocrática, fundada nos instintos vitais, nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade de potência, cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas, baseadas na guerra, nos combates e nos jogos, nas disputas pela glória e pela fama, na busca da honra e da coragem.

Essa concepção da ética suscita duas observações.

Em primeiro lugar, lembremos que a ética nasce como trabalho de uma sociedade para delimitar e controlar a violência, isto é, o uso da força contra outrem. Vimos que a filosofia moral se ergue como reflexão contra a violência, em nome de um ser humano concebido como racional, desejante, voluntário e livre, que, sendo sujeito, não pode ser tratado como coisa. A violência era localizada tanto nas ações contra outrem – assassinato, tortura, suplício, escravidão, crueldade, mentira, etc. – como nas ações contra nós mesmos – passividade, covardia, ódio, medo, adulação, inveja, remorso, etc. A ética se propunha, assim, a instituir valores, meios e fins que nos libertassem dessa dupla violência.

Os críticos da moral racionalista, porém, afirmam que a própria ética, transformada em costumes, preconceitos cristalizados e sobretudo em confiança na capacidade apaziguadora da razão, tornou-se a forma perfeita da violência. Contra ela, os anti-racionalistas defendem o valor de uma violência nova e purificadora – a potência ou a força dos instintos -, considerada libertadora. O problema consiste em saber se tal violência pode ter um papel liberador e suscitar uma nova ética.

Em segundo lugar, é curioso observar que muitos dos chamados irracionalistas contemporâneos baseiam-se na psicanálise e na teoria freudiana da repressão do desejo (fundamentalmente, do desejo sexual). Propõem uma ética que libere o desejo da repressão a que a sociedade o submeteu, repressão causadora de psicoses, neuroses, angústias e desesperos. O aspecto curioso está no fato de que Freud considerava extremamente perigoso liberar o id, as pulsões e o desejo, porque a psicanálise havia descoberto uma ligação profunda entre o desejo de prazer e o desejo de morte, a violência incontrolável do desejo, se não for orientado e controlado pelos valores éticos propostos pela razão e por uma sociedade racional.

Essas duas observações não devem, porém, esconder os méritos e as dificuldades da proposta moral anti-racionalista. É o seu grande mérito desnudar a hipocrisia e a violência da moral vigente, trazer de volta o antigo ideal de felicidade que nossa sociedade destruiu por meio da repressão e dos preconceitos. Porém, a dificuldade, como acabamos de assinalar acima, está em saber se o que devemos criticar e abandonar é a razão ou a racionalidade repressora e violenta, inventada por nossa sociedade, que precisa ser destruída por uma nova sociedade e uma nova racionalidade.

Sob esse aspecto, é interessante observar que não só Freud e Nietzsche criticaram a violência escondida sob a moral vigente em nossa Cultura, mas a mesma crítica foi feita por Bergson (quando descreveu a moral fechada) e por Marx, quando criticou a ideologia burguesa.

Marx afirmava que os valores da moral vigente – liberdade, felicidade, racionalidade, respeito à subjetividade e à humanidade de cada um, etc. – eram hipócritas não em si mesmos (como julgava Nietzsche), mas porque eram irrealizáveis e impossíveis numa sociedade violenta como a nossa, baseada na exploração do trabalho, na desigualdade social e econômica, na exclusão de uma parte da sociedade dos direitos políticos e culturais. A moral burguesa, dizia Marx, pretende ser um racionalismo humanista, mas as condições materiais concretas em que vive a maioria da sociedade impedem a existência plena de um ser humano que realize os valores éticos. Para Marx, portanto, tratava-se de mudar a sociedade para que a ética pudesse concretizar-se.

Críticas semelhantes foram feitas por pensadores socialistas, anarquistas, utópicos, para os quais o problema não se encontrava na razão como poderio dos fracos ressentidos contra os fortes, mas no modo como a sociedade está organizada, pois nela o imperativo categórico kantiano, por exemplo, não pode ser respeitado, uma vez que a organização social coloca uma parte da sociedade como coisa, instrumento ou meio para a outra parte.

Ética e psicanálise

Quando estudamos o sujeito do conhecimento (unidade 4, capítulo 7), vimos que a psicanálise introduzia um conceito novo, o inconsciente, que limitava o poder soberano da razão e da consciência, além de descortinar a sexualidade como força determinante de nossa existência, nosso pensamento e nossa conduta.

No caso da ética, a descoberta do inconsciente traz conseqüências graves tanto para as idéias de consciência responsável e vontade livre quanto para os valores morais.

De fato, se, como revela a psicanálise, somos nossos impulsos e desejos inconscientes e se estes desconhecem barreiras e limites para a busca da satisfação e, sobretudo, se conseguem a satisfação burlando e enganando a consciência, como, então, manter, por exemplo, a idéia de vontade livre que age por dever? Por outro lado, se o que se passa em nossa consciência é simples efeito disfarçado de causas inconscientes reais e escondidas, como falar em consciência responsável? Como a consciência poderia responsabilizar-se pelo que desconhece e que jamais se torna consciente?

Mais grave, porém, é a conseqüência para os valores morais. Em lugar de surgirem como expressão de finalidades propostas por uma vontade boa e virtuosa que deseja o bem, os valores e fins éticos surgem como regras e normas repressivas que devem controlar nossos desejos e impulsos inconscientes. Isso coloca dois problemas éticos novos. Em primeiro lugar, como falar em autonomia moral, se o dever, os valores e os fins são impostos ao sujeito por uma razão oposta ao inconsciente e, portanto, oposta ao nosso ser real? A razão não seria uma ficção e um poder repressivo externo, incompatível com a definição da autonomia? Em segundo lugar, visto que os desejos inconscientes se manifestam por disfarces, como a razão poderia pretender controlá-los sob o dever e as virtudes, se não tem acesso a eles?

A psicanálise mostra que somos resultado e expressão de nossa história de vida, marcada pela sexualidade insatisfeita, que busca satisfações imaginárias sem jamais poder satisfazer-se plenamente. Não somos autores nem senhores de nossa história, mas efeitos dela. Mostra-nos também que nossos atos são realizações inconscientes de motivações sexuais que desconhecemos e que repetimos vida afora.

Do ponto de vista do inconsciente, mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, temer, ambicionar são simplesmente amorais, pois o inconsciente desconhece valores morais. Inúmeras vezes, comportamentos que a moralidade julga imorais são realizados como autodefesa do sujeito, que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada (real ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente condenáveis, podem, porém, ser psicologicamente necessários. Nesse caso, como julgá-los e condená-los moralmente?

Faríamos, porém, uma interpretação parcial da psicanálise se considerássemos apenas esse aspecto de sua grande descoberta, ignorando um outro que também lhe é essencial. De fato, a psicanálise encontra duas instâncias ou duas faces antagônicas no inconsciente: o id ou libido sexual, em busca da satisfação, e o superego ou censura moral, interiorizada pelo sujeito, que absorve os valores de sua sociedade.

Nossa psique é um campo de batalha inconsciente entre desejos e censuras. O id ama o proibido; o superego quer ser amado por reprimir o id, imaginando-se tanto mais amado quanto mais repressor. O id desconhece fronteiras; o superego só conhece barreiras. Vencedor, o id é violência que destrói os outros. Vencedor, o superego é violência que destrói o sujeito. Neuroses e psicoses são causadas tanto por um id extremamente forte e um superego fraco, quanto por um superego extremamente forte e um id fraco. A batalha interior só pode ser decidida em nosso proveito por uma terceira instância: a consciência.

Descobrir a existência do inconsciente não significa, portanto, esquecer a consciência e abandoná-la como algo ilusório ou inútil. Pelo contrário, a psicanálise não é somente uma teoria sobre o ser humano, mas é antes de tudo uma terapia para auxiliar o sujeito no autoconhecimento e para conseguir que não seja um joguete das forças inconscientes do id e do superego.

No caso específico da ética, a psicanálise mostrou que uma das fontes dos sofrimentos psíquicos, causa de doenças e de perturbações mentais e físicas, é o rigor excessivo do superego, ou seja, de uma moralidade rígida, que produz um ideal do ego (valores e fins éticos) irrealizável, torturando psiquicamente aqueles que não conseguem alcançá-lo, por terem sido educados na crença de que esse ideal seria realizável.

Quando uma sociedade reprime os desejos inconscientes de tal modo que não possam encontrar meios imaginários e simbólicos de expressão, quando os censura e condena de tal forma que nunca possam manifestar-se, prepara o caminho para duas alternativas igualmente distantes da ética: ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos reprimidos, ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica, que confunde neurose e moralidade.

Em outras palavras, em lugar de ética, há violência; por um lado, violência da sociedade, que exige dos sujeitos padrões de conduta impossíveis de serem realizados e, por outro lado, violência dos sujeitos contra a sociedade, pois somente transgredindo e desprezando os valores estabelecidos poderão sobreviver.

Em suma, sem a repressão da sexualidade, não há sociedade nem ética, mas a excessiva repressão da sexualidade destruirá, primeiro, a ética e, depois, a sociedade.

O que a psicanálise propõe é uma nova moral social que harmonize, tanto quanto for possível, os desejos inconscientes, as formas de satisfazê-los e a vida social. Essa moral, evidentemente, só pode ser realizada pela consciência e pela vontade livre, de sorte que a psicanálise procura fortalecê-las como instâncias moderadoras do id e do superego. Somos eticamente livres e responsáveis não porque possamos fazer tudo quanto queiramos, nem porque queiramos tudo quanto possamos fazer, mas porque aprendemos a discriminar as fronteiras entre o permitido e o proibido, tendo como critério ideal a ausência da violência interna e externa.

[i] Aristoi, do grego, os melhores. Essa palavra referia-se àqueles que realizavam de um modo excelente os valores gregos da coragem na guerra, da beleza física e do respeito aos deuses. São a elite ou a classe dominante.