Ricardo Alípio da Costa
Imaginemos uma caverna. No interior desta caverna, homens que nasceram e viveram ali sem qualquer contato com o mundo externo, aprisionados e acorrentados. Foram obrigados a olhar sempre em direção da parede do fundo da caverna. Na entrada, atrás deles, há uma fenda por onde passa um feixe de luz exterior. Na parte externa, homens passam pela frente da caverna carregando objetos. Estes homens e estes objetos produzem sombras na parede do fundo da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade. Mas sempre há aquele prisioneiro astuto e corajoso que decide abandonar essa condição, quebrando os grilhões que o aprisionam. Com muita dificuldade ele consegue sair da caverna e descobrir que as sombras eram homens como ele, além de descobrir todo o mundo e a natureza.
Esta metáfora reproduzida por Platão é atribuída a Sócrates em um diálogo com seus discípulos, para dar ênfase ao processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante, que vive do senso comum e do filósofo na sua eterna busca da verdade.
Durante anos, dezoito anos para ser mais exato, muitas pessoas foram aprisionadas no interior da caverna contemplando e interpretando as sombras que viam e de lá proferiram as opiniões mais absurdas e sensacionais sobre a Convenção de Basileia.
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), chegou a publicar a Resolução n.º 23/96, proibindo a importação de pneus usados com base nesta convenção. O que poucos sabem é que a convenção trata apenas de resíduos de pneus (pneus inservíveis), ou seja, aqueles que não são reutilizáveis ou reformáveis. Os pneus inservíveis que a convenção classifica como não perigosos, são considerados insumos para fabricação de outros produtos ou destinados à recuperação energética, ambas atividades amplamente difundidas entre os países desenvolvidos.
Quem quiser se aventurar, ou seja, romper os grilhões que o aprisionam, pode pesquisar o anexo IX, item B3140 do Decreto n.º 4.581/03, combinado com o anexo IV A do Decreto n.º 875/93. Estes Decretos, que incorporaram a Convenção de Basileia ao ordenamento jurídico brasileiro, dizem que são resíduos de pneus (“waste tyres”) aqueles que não se destinam à disposição em aterros, depósito em corpos d’água, incineração a céu aberto, etc.. Por certo que estas operações são coibidas pela convenção porque, efetivamente, é o mesmo que despejar lixo em outro país. Por outro lado, as operações de recuperação de recursos, reciclagem, reaproveitamento, regeneração, reutilização direta ou usos alternativos dos pneus inservíveis são incentivadas pela convenção.
Quanto aos pneus usados para processos de reforma (recapagem, recauchutagem e remoldagem), são tratados pela convenção como altamente benéficos para o meio ambiente em razão da economia de recursos naturais e de energia.
Outro ponto importante é que o país que queira proibir a entrada de qualquer dos resíduos listados na convenção basta notificar o país exportador. Pela convenção, o país exportador é obrigado a proibir imediatamente a exportação do resíduo proibido pelo país notificante.
Por que até hoje o Brasil não notificou os países exportadores ao invés de ficar editando atos internos (portarias)? Porque os países exportadores só seriam obrigados a proibir a exportação de pneus inservíveis (“waste tyres”) que não se destinassem à recuperação de recursos, reciclagem, reaproveitamento, regeneração, reutilização direta ou usos alternativos. Quantos aos pneus usados para reforma, estes sequer estão listados na convenção.
Quem quiser sair da caverna pode procurar um documento intitulado “Revised technical guidelines on environmentally sound management of used tyres” (Diretrizes técnicas revisadas na gerência ambiental sadia de pneumáticos usados), da Convenção de Basileia. Lá encontrarão a definição de “waste tyres”. Depois é só confrontar esta informação com o anexo IX, item B3140, do Decreto n.º 4.581/03. Verão que “waste tyres” são pneus inservíveis. Verão também que este documento incentiva a produção de pneus reformados pelos benefícios ambientais desta atividade.
Portanto, não será a lei nem a Justiça que decidirão esta controvérsia, mas a ignorância, as trevas ou as sombras do fundo da caverna.
Ricardo Alípio da Costa é mestre em Gestão Ambiental e especialista em Direito e Negócios Internacionais.
In: “O Estado do Paraná”, 13 de março de 2009, p.2