Textos
A devoração da esperança no próximo
No individualismo contemporâneo, a impessoalidade converteu-se em indiferença, e os elos afetivos da intimidade foram cercados do medo, reserva, reticência e desejo de autoproteção. Pouco a pouco desaprendemos a gostar de “gente”. Entre quatro paredes ou no anonimato das ruas, o semelhante não é mais o próximo solidário: é o inimigo que traz intranqüilidade, dor ou sofrimento. Conhecer alguém; aproximar-se de alguém; relacionar-se intimamente com alguém passou a ser uma tarefa cansativa. Tudo é motivo de conflito, desconfiança, incerteza e perplexidade. Ninguém satisfaz a ninguém. Na praça ou na casa vivemos – quando vivemos – uma felicidade de meio expediente em que reina a impressão de que perdemos a vida “em colherinhas de café”.
As elites ocidentais são elites sem causa e, no Brasil, estamos repetindo o que, secularmente, aprendemos a imitar. Como nossos modelos europeus e americanos, reagimos ao sentimento de miséria com medo; à opulência com apatia, imobilidade e conformismo. Construir um mundo justo? Para quê? Para quem? Por acaso um mundo mais justo seria aquele em que todos pudessem ter acesso ao que as elites têm?
Mas, o que têm as elites a oferecer? Consumo, tédio, insatisfação e ostentação. Bem ou mal, em nossa tradição moral e intelectual, respondíamos às crises de identidade, reinventando utópicas formas de vida em mundos melhores. Hoje aposentamos os “Rousseau”. Em vez de utopias, manuais de auto-ajuda, psicofármacos, cocaína, e terapêuticos diversos para os que têm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas sobrevivem.
Fizemos de nossas vidas claustros sem virtudes; encolhemos nossos sonhos para que coubessem em nossas ínfimas singularidades interiores; vasculhamos nossos corpos, sexos e sentimentos com a obsessão de quem vive um transe narcísico, e, enfim, aqui estamos nós, prisioneiros de cartões de crédito, carreiras de cocaína e da dolorosa consciência de que nenhuma fantasia sexual ou romântica pode saciar a voracidade com que desejamos ser felizes. Sozinhos em nossa descrença, suplicamos proteção a economistas, policiais, especuladores e investidores estrangeiros, como se algum deles pudesse restituir a esperança “no próximo” que a lógica da mercadoria devorou.
FREIRE COSTA, Jurandir. Folha de S. Paulo, 22.09.1996. Mais 5º. Caderno.