Ivo Pitz
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Textos

Conceito de Disciplina

Construção da Disciplina - Celso dos S. Vasconcellos

Aparentemente, a questão da disciplina escolar é muito simples: “basta conseguir com que os alunos prestem atenção à aula”. Na verdade, o problema é complicadíssimo, pois  envolve a formação do caráter, da cidadania e da consciência do sujeito. No fundo está sempre a questão: que tipo de homem  se quer formar? Por que alguém deve obedecer a outrem?
A questão da disciplina é bastante complexa, uma vez que um grande número de variáveis  influenciam o processo de ensino-aprendizagem. No entanto, apesar dessa complexidade, a verdade é que há um consenso sobre o fato de que sem disciplina não se pode fazer nenhum trabalho pedagógico significativo. Resta saber o que entendemos por disciplina...
“A disciplina pode ser entendida diferentemente, segundo a tarefa do mestre é considerada como de puro ensino ou de educação, e segundo o aluno é considerado como uma simples inteligência a guarnecer de conhecimentos ou como um ser a formar para a vida”.
1 - Considerações de disciplina a serem superadas.
Numa primeira abordagem da disciplina, pode-se dizer que, em grandes linhas, disciplinar significa participar do esforço civilizatório, e a escola nada mais faria que colaborar com este esforço geral. Ocorre, no entanto, que esta é uma visão idealista, uma vez que, na verdade, não existe civilização em geral, nas formas históricas de civilização, que no nosso caso corresponde ao modo capitalista de produção, com sua divisão em classes sociais antagônicas; portanto, na nossa realidade, no sentido geral, disciplinar corresponde à adequação à sociedade existente; significa, pois, inculcação, domesticação, resignação à exploração, etc.
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”.
E, em princípio, é com esse processo que a escola é chamada a colaborar, ou seja, participando do adestramento social às condições de exploração da lógica capitalista.
Sabemos que a escola é determinada socialmente, mas dentro de sua contradição, dentro de seu espaço de autonomia relativa, o que está fazendo? Para a formação de que tipo de sociedade está colaborando? Se o professor pensa em simplesmente conseguir o silêncio de seus alunos para poder falar, está tendo uma visão muito estreita. O professor, por pressão, pode conseguir certas atitudes dos alunos, mas que se esvaem quando não estão mais em sua presença; trata-se de uma grande farsa colocada pelo sistema de educação: não se está preocupado com o futuro do educando, mas em apenas sobreviver como instituição ou como educador, não tendo, de preferência, sua imagem muito abalada pelas eventuais falhas na disciplina(garantir a aparência).
Que conceito de disciplina tem a maioria dos educadores? Geralmente, disciplina é entendida como a adequação do comportamento do aluno àquilo que o professor deseja. Só é considerado disciplinado o aluno que se comporta como o professor quer. A questão que poderia ser colocada é a seguinte: que comportamento deseja o professor? Freqüentemente, o desejo do professor é que o aluno fique quieto, ouça as explicações que tem para dar, faça direitinho os exercícios e, pronto. Se isto acontecer, sentir-se-á realizado.
“...a representação de competência profissional está associada ao bom domínio de classe, seja ele obtido por métodos autocráticos, seja através de atitudes persuasivas”.
O conceito de disciplina associado à obediência está muito presente no cotidiano da escola, mais ou menos conscientemente, isto porque há uma verdadeira “luta em classe”, onde o professor está procurando sobreviver, num contexto de tantos desgastes. O trabalho do educador é estressante; ele procura um pouco de paz para poder respirar; daí esperar o comportamento dócil, passivo do aluno. É claro que esta expectativa se coloca a partir do círculo da alienação em que se encontra, onde seu desejo, alienado, não busca a interação, o encontro, a comunicação, mas o isolamento, o fechamento. a obediência, a submissão, com esperança de reencontrar, assim, o espaço vital de que sente falta. Querendo resolver o problema, na verdade, acaba agudizando-o, já que se isola, não entra em efetiva comunicação com seus alunos, que passam a rejeitar - inconscientemente - sua postura. Este posicionamento é desumano, pois nega a existência do outro, tentando reduzi-lo a objeto. Nega o outro como sujeito. Há necessidade de se sair desse ciclo vicioso.
Diante disto, poderíamos questionar: onde fica o comportamento do professor(já que só se falou do comportamento do aluno) e o desejo do aluno(já que só se falou do desejo do professor)? Este seria um caminho reativo, apenas aparentemente crítico. Indo por aí, muito provavelmente, cairemos na educação liberal-espontaneísta, onde disciplina é seguir os impulsos, fazer o que se tiver vontade de fazer. A responsabilidade é da classe(“Problema de vocês”: “eu já sei, vocês é que precisam aprender”; “quem não quiser assistir à aula, pode sair”; “vocês é que estão pagando”; etc). O professor acaba tendo que recorrer sempre a este discurso, pois não convence ninguém.
Precisamos colocar o problema no seu devido lugar. Mais uma vez, a contradição comportamento/desejo do aluno x comportamento/desejo do professor é falsa. Não se trata de medir forças, nem estatutos, nem ver “quem pode mais”. Isto, aliás, é o que tem sido feito, infantilmente, por muitos professores. Trata-se, sim, de redimensionar o problema: a questão central não está na disputa professor x aluno, mas sim na  organização do trabalho coletivo em sala de aula para se realizar a construção do conhecimento, da educação.
2 - A Disciplina que desejamos
Ganhamos clareza da disciplina que não queremos: a autoritária ou a espontaneísta. O desafio agora é vislumbrar - e concretizar - a superação de ambas...
O que almejamos em termos de disciplina? Buscamos construir uma nova disciplina “que deixe de ser a expressão das relações sociais alienadas”. Basicamente, podemos dizer que o objetivo é conseguir o autogoverno dos sujeitos participantes do processo educativo e, dessa forma, as necessárias  condições para o trabalho coletivo em sala de aula(e na escola), onde haja o desenvolvimento da autonomia e da solidariedade, ou seja, as condições para uma aprendizagem significativa, crítica, criativa e duradoura. Almejamos uma disciplina consciente e interativa, marcada pela:
- participação;
- respeito;
- responsabilidade;
- construção do conhecimento;
- formação do caráter da cidadania.
“A disciplina significa a capacidade de comandar a si mesmo, de se impor aos caprichos individuais, à veleidades desordenadas, significa, enfim, uma regra de vida. Além, disso, significa a consciência da necessidade livremente aceita, na medida em que é reconhecida como necessária para que um organismo social qualquer atinja o fim proposto”
A disciplina não deve ter fim em si mesma: deve estar relacionada aos objetivos maiores da escola, que deve formar o aluno “ ... como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige”, ajudando a construir uma nova hegemonia, a hegemonia das classes populares. A realidade está sendo assim, mas pode ser mudada; a partir da experiência de mudança no microcosmo educacional, o aluno está se educando para a mudança social mais ampla. A experiência de não-poder, de impotência, repetida constantemente, vai levando a um estado de apatia, de descrença no mundo e na humanidade, facilitando, inclusive, o campo para a busca de subterfúgios alienantes(drogas, fanatismo político ou religioso, misticismo, jogos de azar, etc.).
“antes de tudo, nossa disciplina de ver ser sempre uma disciplina consciente. Nossa disciplina, como fenômeno moral e político, deve vir acompanhada de consciência, isto é, de uma noção do que é disciplina e para que dela necessitamos”.
Freqüentemente, trabalha-se a disciplina de forma restritiva: dá-se muita ênfase aos limites, ao que “não pode”, em detrimento das possibilidades, do que se espera. É a disciplina do “Não”, “Não” e “Não”.
Esta é a moral que consagra o que não se deve fazer. Chamo a isto de disciplina da abstenção ou da inibição. Considero que a disciplina na coletividade infantil deve ter um caráter: o impulso de avançar. Esta é a disciplina da vitória, disciplina da superação. Podemos nos orgulhar da disciplina que chama adiante, que exige algo do homem, algo maior que a inibição”.
  A disciplina, portanto, deve apontar os limites - como normalmente se faz -  mas também as possibilidades - geralmente esquecidas.
Numa visão dialético-libertadora, compreende-se que a disciplina se constrói pela interação do sujeito com outros e com a realidade, até chegar ao autodomínio; podemos afirmar, parafraseando Paulo Freire: “Ninguém disciplina ninguém. Ninguém se disciplina sozinho. Os homens se disciplinam em comunhão, mediados pela realidade”.
O educador, num primeiro momento, pode assumir a responsabilidade pela disciplina, enquanto articulador da proposta, levando, no entanto, a classe a assumi-la progressivamente. Tem como parâmetro, não a sua pessoa(“sua autoridade”) , mas as necessárias condições para o trabalho coletivo em sala de aula.
Ocorre que as relações entre os homens podem ser alienadas, reificadas, coisificadas, ou seja, os limites estabelecidos podem não corresponder às reais necessidades dos sujeitos, mas à necessidade de um ou outro, ou de apenas um grupo, em detrimento dos demais. Desejamos muito, na escola e na sala de aula, a disciplina, a aceitação da proposta de trabalho; mas esquecemos que a resistência, a não concordância, ou pelo menos sua possibilidade, é um fator fundamental para a sociedade não parar, não se acomodar, não se submeter a eventuais tiranos. Quando se está sob a tirania, desejamos que as pessoas se rebelem, que se levantem contra, enfim, que se indisciplinem. Esta tensão entre adaptação e transformação é constante. O sujeito precisa se adaptar a uma série de valores, costumes, práticas sociais, etc. , que fazem parte de sua cultura, mas, ao mesmo tempo, deve estar atento para a necessária transformação destes valores, práticas, etc., naquilo que têm de desumano, de alienado, que precisa ser superado.
A disciplina consciente e interativa, portanto, pode ser entendida como o processo de construção da auto regulação do sujeito e/ou do grupo, que se dá na interação social e pela tensão dialética adaptação-transformação, tendo em vista atingir conscientemente um objetivo.
3 - Perspectivas de ação.
As causas da indisciplina podem ser encontradas em cinco grandes níveis: Sociedade, Família, Escola, Professor e aluno. Estes níveis são apontados mais para uma orientação da investigação da investigação, para facilitar o estudo e para não se perderem de vista os diferentes fatores de interferência; é preciso, no entanto, tomar cuidado com uma certa tendência de ver estes aspectos isoladamente um do outro; na realidade estão profundamente entrelaçadas. A questão que deve ser colocada é sobre o grau de importância ou de determinação de cada um desses níveis. Onde se encontra o núcleo do problema da disciplina? No aluno? No professor? Na escola? Na família? Na sociedade?. Evidentemente, enquanto determinação mais geral, entendemos que a raiz do problema encontra-se na atual forma de organização da sociedade, base de todas as outras indisciplinas. Ocorre, entretanto, que esta determinação mais geral não se concretiza por si só, qual seja, ela é concretizada pela mediação dos diferentes agentes(professores, pais, alunos, diretores, governantes, etc.). Esta tomada de consciência abre espaço para a luta, a resistência, a busca de uma contra-determinação.
O que fazer para propiciar a construção da disciplina em sala de aula e na escola? Há que se buscar, em cada realidade, qual a forma necessária e possível de ação, articulando todas as frentes de luta.
Não pode haver ilusão e se achar que o trabalho é fácil. A disciplina não está pronta: é uma construção coletiva. Trata-se de uma luta; os que querem uma sociedade diferente colocam-se na contra corrente da ideologia e sistema dominantes. A grande diferença é que este é um trabalho efetivamente humanizador. Vai ser preciso interagir com os alunos, lutar com sua alienação - ao mesmo tempo em que luta Com a própria - com as forças desumanas que trazem dentro de si, como fruto de toda sua história de vida. É uma luta de forças de vida e de morte. Há necessidade de a escola “se organizar de tal forma que permita aos educadores forjarem uma ‘vontade coletiva’, um firme ‘desejo’ e um inarredável compromisso político com a aprendizagem sólida e duradoura do aluno”.
Há necessidade da participação, do envolvimento de todos no enfrentamento do problema.
 Propusemos organizar o próprio sistema de disciplina, envolvendo os pais e os alunos. Não adianta a escola desenvolver todo um trabalho, se não tiver ressonância e continuidade na família. A disciplina na escola tem que ser construída por todos os elementos envolvidos, senão não vai ter frutos positivos”.
A seguir, são apresentadas algumas perspectivas de ação no sentido da construção da disciplina interativa e coletiva em sala de aula. Esta é uma tarefa difícil, pois, de um lado, sentimos a forte demanda por parte dos educadores, pelo “que fazer”, estando já cansados de tanto ouvir e fazer análises, críticas e mais críticas; e, de outro, sabemos do risco de as propostas serem tomadas como “verdades prontas e acabadas”. Optamos por correr o risco, alertando, no entanto, que 1) o que apontamos aqui são algumas conclusões preliminares, provisórias, portanto; 2) não se trata de modelos ou “receitas”, mas de possíveis alternativas, que têm como função provocar a reflexão para que o coletivo escolar busque suas próprias soluções, tendo em vista a sua realidade e seu projeto educativo. Insistimos na importância da construção coletiva da práxis pedagógica. Entendemos ainda que, neste processo, os sujeitos que não estão entendendo ou concordando com a linha que está sendo assumida podem ajudar o grupo, na medida em que não camuflem suas dúvidas ou discordâncias, o que obrigará o grupo a uma reflexão mais profunda, bom antídoto para os “modismos”.